LIBERTAÇÃO
  
 FRANCISCO  CÂNDIDO XAVIER
 DITADO PELO  ESPÍRITO ANDRÉ LUIZ
 
   
  
  
  
 Numa cidade estranha
  
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 No dia  imediato, pusemo-nos em marcha.
  
 Respondendo-nos  às argüições afetuosas, o Instrutor informou-nos de que teríamos apenas alguns  dias de ausência.
 Além dos  serviços referentes ao encargo particular que nos mobilizava, entraríamos em  algumas atividades secundárias de auxílio. Técnico em missões dessa natureza,  afirmou que nos admitira, num trabalho que ele poderia desenvolver sôzinho, não  só pela confiança que em nós depositava, mas também pela necessidade da formação  de novos cooperadores, especializados no ministério de  socorro às trevas.
 Após a  travessia de várias regiões, “em descida”, com escalas por diversos postos e  instituições socorristas, penetramos vasto domínio de sombras.
 A claridade  solar jazia diferençada.
 Fumo cinzento  cobria o céu em toda a sua extensão.
 A volitação  fácil se fizera impossível.
 A vegetação  exibia aspecto sinistro e angustiado. As árvores não se vestiam de folhagem  farta e os galhos, quase secos, davam a ideia de braços erguidos em súplicas  dolorosas.
 Aves  agoureiras, de grande tamanho, de uma espécie que poderá ser situada entre os  corvideos. crocitavam em surdina, semelhando-Se a pequenos monstros alados  espiando presas ocultas.
 O que mais  contristava, porém, não era o quadro desolador, mais ou menos semelhante a  outros de meu conhecimento, e, sim, os apelos cortantes que provinham dos  charcos. Gemidos tipicamente humanos eram pronunciados em todos os  tons.
 Acredito,  teríamos examinado individualmente os sofredores que aí se localizavam, se nos  entregássemos a detida apreciação; todavia, Gúbio, àmaneira de outros  instrutores, não se detinha para atender a curiosidade  improfícua.
 Lembrando a  “selva escura” a que Alighieri se reporta no imortal poema, eu trazia o coração  premido de interrogativas inquietantes.
 Aquelas árvores  estranhas, de frondes ressecadas, mas vivas, seriam almas convertidas em  silenciosas sentinelas de dor, qual a mulher de Lot, transformada simbôlicamente  em estátua de sal?
 E aquelas  grandes corujas diferentes, cujos olhos brilhavam desagradàvelmente nas sombras,  seriam homens desencarnados sob tremendo castigo da forma? Quem chorava nos  vales extensos de lama? criaturas que houvessem vivido na Terra que  recordávamos, ou duendes desconhecidos para nós?
 De quando em  quando, grupos hostis de entidades espirituais em desequilíbrio nos  defrontavam, seguindo adiante, indiferentes, incapazes de registrar-nos a  presença. Falavam em alta voz, em português degradado, mas inteligível,  evidenciando, pelas gargalhadas, deploráveis condições de ignorância.  Apresentavam-se em trajes bisonhos e conduziam apetrechos de lutar e  ferir.
 Avançamos mais  profundamente, mas o ambiente passou a sufocar-nos. Repousamos, de algum modo,  vencidos de fadiga singular, e Gúbio, depois de alguns momentos, nos  esclareceu:
 — Nossas  organizações perispiríticas, à maneira de escafandro estruturado em material  absorvente, por ato deliberado de nossa vontade, não devem reagir contra as  baixas vibrações deste plano. Estamos na posição de homens que, por amor,  descessem a operar num imenso lago de lodo; para socorrer eficientemente os que  se adaptaram a ele, são compelidos a cobrir-se com as substâncias do charco,  sofrendo-lhes, com paciência e coragem, a influenciação  deprimente.
 Atravessamos importantes limites vibratórios e cabe-nos  entregar a forma exterior ao meio que nos recebe, a fim de sermos  realmente úteis aos que nos propomos auxiliar. Finda a nossa transformação  transitória, seremos vistos por qualquer dos habitantes desta região menos  feliz. A oração, de agora em diante, deve ser nosso único fio de  comunicação com o Alto, até que eu possa verificar, quando na Crosta, qual o  minuto mais adequado de nosso retorno aos dons luminescentes. Não estamos em  cavernas infernais, mas atingimos grande império de inteligências perversas e  atrasadas, anexo aos círculos da Crosta, onde os homens terrestres lhes sofrem  permanente influenciação. Chegou para nós o momento de pequeno testemunho. Muita  capacidade de renúncia é indispensável, a fim de alcançarmos nossos fins.  Podemos perder por falta de paciência ou por escassez de vocação para o  sacrifício. Para a malta de irmãos retardados que nos envolverá, seremos  simples desencarnados, ignorantes do próprio destino.
 Passamos a  inalar as substâncias espessas que pairavam em derredor, como se o ar fosse  constituído de fluidos viscosos.
 Elói  estirou-se, ofegante, e não obstante experimentar, por minha vez, asfixiante  opressão, busquei padronizar atitudes pela conduta do Instrutor, que tolerava a  metamorfose, silencioso e palidíssimo.
 Reparei,  confundido, que a voluntária integração com os elementos inferiores do plano  nos desfigurava enormemente. Pouco a pouco, sentimo-nos pesados e tive a ideia  de que fora, de improviso, religado, de novo, ao corpo de carne, porque, embora  me sentisse dono da própria individualidade, me via revestido de matéria densa,  como se fôsse obrigado a envergar inesperada armadura.
 Decorridos  longos minutos, o orientador apelou, diligente:
 —    Prossigamos! Doravante, seremos auxiliares anônimos. Não nos convém, por  enquanto, a identificação pessoal.
 —    Mas, não será isto mentir? clamou Elói, quase refeito.
 Gúbio dividiu  conosco um olhar de benevolência e explicou, bondoso:
 —    Não te recordas do texto evangélico que recomenda não saiba a mão  esquerda o que dá a direita? Este é o momento de ajudarmos sem alarde. O Senhor  não é mentiroso quando nos estende invisíveis recursos de salvação, sem que lhe  vejamos a presença. Nesta cidade sombria, trabalham  inúmeros companheiros do bem nas condições em que nos achamos. Se erguermos  bandeira provocante, nestes campos, nos quais noventa e cinco por cento das  inteligências se encontram devotadas ao mal e à desarmonia, nosso  programa será estraçalhado em alguns instantes. Centenas de milhares de  criaturas aqui padecem amargos choques de retorno à realidade, sob  a vigilância de tribos cruéis, formadas de espíritos egoístas, invejosos e  brutalizados Para a sensibilidade medianamente desenvolvida, o sofrimento aqui é  inapreciável.
  
 —    E há governo estabelecido num reino estranho e  sinistro quanto este? — indaguei.
  
 —    Como não? — respondeu Gúbio, atenciosamente. — Qual ocorre na esfera  carnal, a direção, neste domínio, é concedida pelos Poderes Superiores, a  título precário. Na atualidade, este grande empório de padecimentos  regeneratívos permanece dirigido por um sátrapa de inqualificável impiedade,  que aliciou para si próprio o pomposo título de Grande Juiz,  assistido por assessores políticos e religiosos tão frios e perversos quanto ele  mesmo. Grande aristocracia de gênios implacáveis aqui se alinha, senhoreando  milhares de mentes preguiçosas, delinqüentes e enfermiças...
  
 — E porque permite Deus semelhante  absurdo?
  
 Dessa vez, era  o meu colega que perguntava, de novo, semi-apavorado, agora, ante os  compromissos que assumíramos.
 Longe de  perturbar-se, Gúbio replicou:
 —  Pelas mesmas razões educativas através das quais não  aniquila uma nação humana quando, desvairada pela sede de dominação,  desencadeia guerras cruentas e destruidoras, mas a entrega à expiação dos  próprios crimes e ao infortúnio de si mesma, para que aprenda a integrar-se na  ordem eterna que preside à vida universal. De período a período, contado cada um  por vários séculos, a matéria utilizada por semelhantes inteligências é  revolvida e reestruturada, qual acontece nos círculos terrenos; mas se o Senhor  visita os homens pelos homens que se santificam, corrige igualmente as criaturas  por intermédio das criaturas que se endurecem ou bestializam.
  
 —  Significa então que os gênios malditos, os demônios  de todos os tempos... — exclamei, reticencioso...
 — Somos nós mesmos — completou o Instrutor, paciente —  quando nos desviamos, impenitentes, da Lei. Já perambulamos por estes sítios  sombrios e inquietantes, mas os choques biológicos do renascimento e da  desencarnação, mais ou menos recentes, não te permitem, nem a Elói, o  desabrocho de reminiscências completas do passado. Comigo, porém, a situação é  diversa.
 A  extensão de meu tempo, na vida livre, já me confere recordações mais dilatadas  e, de antemão, conheço as lições que constituam novidade. Muitos de nossos  companheiros, guindados à altura, não mais identificam nestas paragens senão  motivos de cansaço, repugnância e pavor; todavia, é forçoso observar que o  pântano, invariàvelmente, é uma zona da natureza pedindo o socorro dos servos  mais fortes e generosos.
 Música exótica  fazia-se ouvir não distante e Gúbio rogou-nos prudência e humildade em favor do  êxito no trabalho a desdobrar-se.
 Reerguemo-nos e  avançamos.
 Fizera-se-nos  tardio o passo e nossa movimentação difícil.
 Em voz baixa, o  orientador reiterou a recomendação:
 — Em qualquer  constrangimento íntimo, não nos esqueçamos da prece. É, de ora em diante, o  único recurso de que dispomos a fim de mobilizar nossas reservas mentais  superiores, em nossas necessidades de reabastecimento psíquico. Qualquer  precipitação pode arrojar-nos a estados primitivistas, lançando-nos em nivel  inferior, análogo ao dos espíritos infelizes que desejamos auxiliar. Tenhamos  calma e energia, doçura e resistência, de ânimo voltado para o  Cristo.
 Lembremo-nos de  que aceitamos o encargo desta hora, não para justiçar e sim para educar e  servir.
 Adiantamo-nos, caminho a fora, como se fazia possível.
 Em minutos breves, penetramos vastissima aglomeração de vielas, reunindo  casario decadente e sórdido.
 Rostos horrendos contemplavam-nos furtivamente, a princípio, mas, à  medida que varávamos o terreno, éramos observados, com atitude agressiva, por  transeuntes de miserável aspecto.
 Alguns quilômetros de via pública, repletos de quadros deploráveis,  desfilaram a nossos olhos.
 Mutilados às centenas, aleijados de todos os matizes, entidades  visceralmente desequilibradas, ofereciam-nos paisagens de  arrepiar.
 Impressionado com a multidão de criaturas deformadas que se enfileiravam  sob nosso raio visual, perfeitamente arrebanhadas ali em experiência coletiva,  enderecei algumas interrogações ao Instrutor, em tom  discreto.
  
  
 Porque tão extensa comunidade de sofredores? Que causas impunham  tão flagrante decadência da forma?
  
 Paciente, o  orientador não se fêz demorado na resposta.
  
 — Milhões de pessoas — informou, calmo —, depois da morte, encontram  perigosos inimigos no medo e na vergonha de si mesmas. Nada se perde, André, no  círculo de nossas ações, palavras e pensamentos. O registro de nossa vida  opera-se em duas fases distintas, perseverando no exterior, através dos efeitos  de nossa atuação em criaturas, situações e coisas, e persistindo em nós mesmos,  nos arquivos da própria consciência, que recolhe matemàticamente todos os  resultados de nosso esforço, no bem ou no mal, ao interior dela própria, O  espírito, em qualquer parte, move-se no centro das criações que desenvolveu.  Defeitos escuros e qualidades louváveis envolvem-no, onde se encontre. A  criatura na Terra, por onde peregrinamos, ouve argumentos alusivos ao Céu e ao  Inferno e acredita vagamente na vida espiritual que a espera,  além-túmulo.
  
 Mais cedo que possa imaginar, perde o veículo de carne e compreende  que não se pode ocultar por mais tempo, desfeita a máscara do corpo sob a qual  se escondia à maneira da tartaruga dentro da carapaça. Sente-se tal qual é e  receia a presença dos filhos da luz, cujos dons de penetração lhe  identificariam, de pronto, as mazelas indesejáveis. O perispírito, para a mente,  é uma cápsula mais delicada, mais suscetível de refletir-lhe a glória ou a  viciação, em virtude dos tecidos rarefeitos de que se constitui. Em razão disso,  as almas decaídas, num impulso de revolta contra os deveres que nos competem a  cada um, nos serviços de sublimação, aliam-se umas às outras através de  organizações em que exteriorizam, tanto quanto possível, os lamentáveis pendores  que lhes são peculiares, não obstante ferretoadas pelo aguilhão das  inteligências vigorosas e cruéis.
  
 — Mas —  interferi — não há recurSos de soerguer semelhantes  comunidades?
  
 — A mesma lei  de esforço próprio funciona igualmente aqui. Não faltam apelos santificantes de  Cima; contudo, com a ausência da íntima adesão dos interessados ao ideal da  melhoria própria, é impraticável qualquer iniciativa legítima, em matéria de  reajustamento geral. Sem que o espírito, senhor da razão e dos valores eternos  que lhe são consequentes, delibere mobilizar o patrimônio que lhe é próprio, no  sentido de elevar o seu campo vibratório, não é justo seja arrebatado, por  imposição, a regiões superiores que ele mesmo, por enquanto, não sabe desejar.  E até que resolva atirar-se ao empreendimento da própria ascenSãO, vai sendo  aproveitado pelas leis universais no que possa ser útil à Obra Divina. A  minhoca, enquanto é minhoca, é compelida a trabalhar o solo; o peixe, enquanto é  peixe, não viverá fora d’água...
 Sorrindo, ante  a própria argumentação, concluiu bem humorado:
 — É natural,  pois, que o homem, dono de vastaS teorias de virtude salvadora, enquanto se  demora no comboio da inferioridade seja empregado em atividades inferiores. A  Lei estima infinitamente a Lógica.
 Calou-se Gübio,  evidentemente constrangido pela necessidade de não acordarmoS demasiada  atenção em torno de nós.
 Tocado, no  entanto, pela miséria que ali emoldurava tanta dor, perdi-me num mar de  indagações íntimas.
 Que empório  extravagante era aquele? algum país onde vicejassem tipos sub-humanos? Eu sabia  que semelhantes criaturas não envergavam corpos carnais e que se congregavam num  reino purgatorial, em beneficio próprio; entretanto, vestiam-Se de roupagens de  matéria francamente imunda. Lombroso e Freud encontrariam aí extenso material  de observação. Incontáveis tipos que interessariam, de perto, à criminologia e à  psicanálise. Vagueavam absortos, sem rumo. Exemplares inúmeros de pigmeus, cuja  natureza em si ainda não posso precisar, passavam por nós, aos magotes. Plantas  exóticas, desagradáveis ao nosso olhar, ali proliferam, e animais em cópia  abundante, embora monstruosos, se movimentavam a esmo, dando-me a ideia de seres  acabrunhados que pesada mão transformara em duendes. Becos e despenhadeiros escuros se multiplicavam em  derredor, acentuando-nos o angustioso assombro.
 Após a  travessia de vastíssima área, não sopitei as interrogações que me escapavam do  cérebro.
 O  Instrutor, todavia, esclareceu, discreto:
          — Guarda as perguntas intempestivas no momento. Estamos numa colônia  purgatorial de vasta expressão. Quem não cumpre aqui dolorosa penitência  regenerativa, pode ser considerado inteligência sub-humana. Milhares de  criaturas, utilizadas nos serviços mais rudes da natureza, movimentam-se nestes  sítios em posição infraterrestre. A ignorância, por ora, não lhes confere a  glória da responsabilidade. Em desenvolvimento de tendências dignas,  candidatam-se à humanidade que conhecemos na Crosta. Situam-se entre o  raciocínio fragmentário do macacóide e a idéia simples do homem primitivo na  floresta. Afeiçoam-se a personalidades encarnadas ou obedecem, cegamente, aos  espíritos prepotentes que dominam em paisagens como esta. Guardam, enfim, a  ingenuidade do selvagem e a fidelidade do cão. O contacto com certos indivíduos  inclina-os ao bem ou ao mal e somos responsabilizados pelas Forças Superiores  que nos governam, quanto ao tipo de influência que exercermos sobre a mente  infantil de semelhantes criaturas. Com respeito aos Espíritos que se mostram  nestas ruas Sinistras, exibindo formas quase animalescas, neles reparamos várias  demonstrações da anormalidade a que somos conduzidos pela desarmonia interna.  Nossa atividade mental nos marca o perispírito. Podemos reconhecer a propriedade  do asserto, quando ainda no mundo. O glutão começa a adquirir aspecto deprimente  no corpo em que habita. Os viciados no abuso do álcool passam a viver de borco,  arrojados ao solo, à maneira de grandes vermes. A mulher que se habituou a  mercadejar com o vaso físico, olvidando as sagradas finalidades da vida,  apresenta máscara triste, sem sair da carne. Aqui, porém, André, o fogo  devorador das paixões aviltantes revela suas vítimas com mais hedionda  crueldade.
 Certo, porque  eu refletisse no problema de assistência, o orientador aduziu:
 — É  impraticável a enfermagem individual e sistemática numa cidade em que se  amontoam milhares de alienados e doentes. Um médico do mundo surpreenderia  aqui, às centenas, casos de amnésia, de psicastenia, de loucura, através de  neuroses complexas, alcançando a conclusão de que toda a patogenia permanece  radicada aos ascendentes de ordem mental. Quem cura nestes lugares há de ser o  tempo com a piedade celeste ou a piedade celeste por intermédio de embaixadores  da renúncia, em serviços de intercessão para os espíritos arrependidos que se  refugiem na obediência aos imperativos da Lei, inspirados pela boa  vontade.
 Alguns  transeuntes repulsivos ombrearam conosco e Gúbio considerou prudente  silenciar.
 Notei a  existência de algumas organizações de serviços que nos pareceriam, na esfera  carnal, ingênuas e infantis, reconhecendo que a ociosidade era, ali, a nota  dominante. E porque não visse crianças, exceção feita das raças de anões, cuja  existência percebia sem distinguir os pais dos filhos, arrisquei, de novo, uma  indagação, em voz baixa.
 Respondeu o  Instrutor, atencioso:
 — Para os  homens da Terra, prôpriamente considerados, este plano é quase infernal. Se a  compaixão humana separa as crianças dos criminosos definidos, que dizer do  carinho com que a compaixão celestial vela pelos infantes?
 — E porque em  geral tanta ociosidade neste plano? — indaguei ainda.
 — Quase todas  as almas humanas, situadas nestas furnas, sugam as energias dos encarnados e  lhes vampirizam a vida, qual se fôssem lampreias insaciáveis no oceano do  oxigênio terrestre. Suspiram pelo retorno ao corpo físico, de vez que não  aperfeiçoaram a mente para a ascensão, e perseguem as emoções do campo carnal  com o desvario dos sedentos no deserto. Quais fetos adiantados absorvendo as  energias do seio materno, consomem altas reservas de força dos seres encarnados  que as acalentam, desprevenidos de conhecimento superior. Daí, esse desespero  com que defendem no mundo os poderes da inércia e essa aversão com que  interpretam qualquer progresso espiritual ou qualquer avanço do homem na  montanha de santificação. No fundo, as bases econômicas de toda essa gente  residem, ainda, na esfera dos homens comuns e, por isto, preservam,  apaixonadamente, o sistema de furto psíquico, dentro do qual se sustentam, junto  às comunidades da Terra.
 A essa altura,  defrontamos acidentes no solo, que o Instrutor nos levou a  atravessar.
 Subimos,  dificilmente, a rua íngreme e, em pequeno planalto, que se nos descortinou aos  olhos espantadiços, a paisagem alterou-se.
 Palácios  estranhos surgiam imponentes, revestidos de claridade abraseada, semelhante à  auréola do aço incandescente.
 Praças bem  cuidadas, cheias de povo, ostentavam carros soberbos, puxados por escravos e  animais.
 O aspecto  devia, a nosso ver, identificar-se com o das grandes cidades do Oriente, de  duzentos anos atrás.
 Liteiras e  carruagens transportavam personalidades humanas, trajadas de modo  surpreendente, em que o escarlate exercia domínio, acentuando a dureza dos  rostos que emergiam dos singulares indumentos.
 Respeitável  edifício destacava-se diante de uma fortaleza, com todos os característicos de  um templo, e o orientador confirmou-me as impressões, asseverando que a casa se  destinava a espetaculoso culto externo.
 Enquanto nos  movimentávamos, admirando o suntuoso casario em contraste chocante com o vasto  reino de miséria que atravessáramos, alguém nos interpelou,  descortês:
 —  Que fazem?
 Era um homem  alto, de nariz adunco e olhos felinos, com todas as maneiras do policial  desrespeitoso, a identificar-nos.
 —  Procuramos o sacerdote Gregório, a quem estamos recomendados — esclareceu  Gúbio, humilde.
 O   estranho pôs-se à frente, determinou lhe acompanhássemos as passadas, em  silêncio, e guiou-nos a um casarão de feio aspecto.
 —  É aqui! — disse em tom seco e, após apresentar-nos a um homem maduro,  envolvido em longa e complicada túnica, retirou-se.
 Gregório não  nos recebeu hospitaleiramente. Fitou em Gúbio os olhos desconfiados de fera  surpreendida e interrogou:
 —  Vieram da Crosta, há muito tempo?
 —  Sim — respondeu nosso Instrutor —, e temos necessidade de  auxilio.
 —  Já foram examinados?
 —  Não.
 —  E quem os enviou? — inquiriu o sacerdote, sob visível  perturbação.
 —  Certa mensageira de nome Matilde.
 O    anfitrião estremeceu, mas observou, implacável:
 — Não sei quem  seja. Todavia, podem entrar. Tenho serviços nos mistérios e não posso ouvi-los  agora. Amanhã, porém, ao anoitecer, serão levados aos setores de seleção, antes  de admitidos ao meu serviço.
 Nem mais uma  palavra.
 Entregues a um  servidor de fisionomia desagradável, demandamos porão escuro, e confesso que  acompanhei Gúbio e Elói, de alma conturbada por receio absorvente e indefinível.