Camille  Flammarion
 Urânia
 Traduzido do  Francês
 Uranie 
 1889
 Viagem entre os universos e os mundos -
As humanidades  desconhecidas
  
  
 Vi então a Terra que tombava nas profundezas da imensidade; as  cúpulas do observatório, Paris iluminada, desciam rapidamente; não obstante  sentir-me imóvel, tive a impressão análoga às que se experimenta em balão,  quando, elevando-se nos ares, se vê a Terra descer. Subi, subi durante muito  tempo, arrebatado em mágica ascensão para o Zênite inacessível. Urânia estava  junto de mim, um pouco mais elevada, fitando-me com doçura e mostrando-me os  reinos terrestres. O dia voltara. 
  
 Reconheci a França, o Reno, a Alemanha, a Áustria, a Itália, o  Mediterrâneo, a Espanha, o oceano Atlântico, a Mancha, a Inglaterra. Mas toda  essa liliputiana geografia diminuía rapidamente. Em breve o globo terráqueo  estava reduzido às aparentes dimensões do plenilúnio, depois às de uma luazinha  cheia.
  
 – Eis aí – disse-me ela –, o famoso globo terrestre sobre o  qual se agitam tantas paixões, e que encerra em seu círculo estreito o  pensamento de tantos milhões de seres cuja vista não se estende ao Além. Vê  quanto a sua aparente grandeza diminui à proporção que o nosso horizonte se  dilata. Já não distinguimos mais a Europa da Ásia. Eis ali o Canadá, a América  do Norte. Quanto é minúsculo tudo aquilo!
  
 Passando  vizinho à Lua, eu havia notado as paisagens montanhosas do nosso satélite, os  cimos radiante de luz, os profundos vales cheios de sombras, e teria desejado  deter-me para estudar de mais perto essa morada vizinha; mas, sem mesmo  dignar-se lançar para ela um simples olhar, Urânia me arrastava em rápido vôo  para as regiões siderais.
  
 Subimos sempre. A Terra, diminuindo de mais em mais, à proporção  que nos distanciamos, chegou a ficar reduzida ao aspecto de simples estrela,  brilhando com a luz solar no seio da imensidade vazia e negra. Tínhamo-nos  voltado para o Sol, que resplendia no Espaço sem iluminá-lo, e víamos, ao mesmo  tempo em que a ele, as estrelas e os planetas, que a sua luz não apagava, por  isso que não ilumina o éter invisível. A deusa angélica mostrou-me Mercúrio, na  vizinhança do Sol; Vênus, que brilhava do lado oposto; a Terra, igual a Vênus,  comparada em aspecto e em brilho; Marte, cujos mediterrâneos e canais reconheci;  Júpiter, com as suas quatro luas enormes; Saturno,  Urano...
  
 – Todos esses mundos – disse-me ela – são sustentados  no vácuo pela atração do Sol, em torno do qual giram com velocidade. É um todo  harmonioso, gravitando em redor do centro. A Terra não é  mais do que uma ilha flutuante, uma aldeia dessa grande pátria solar, e esse  império solar não é, ele próprio, mais do que uma província no seio da  imensidade sideral.
   
 Subíamos sempre. O Sol e seu sistema distanciavam-se rapidamente;  a Terra não era mais que um ponto; Júpiter mesmo, esse mundo tão colossal,  mostrou-se diminuído, e assim Marte e Vênus, a um pontinho minúsculo, apenas  superior ao da Terra. Passamos à vista de Saturno, cingido dos seus anéis  gigantescos, e cujo só testemunho bastaria para provar a imensa e inimaginável  variedade que reina no Universo; Saturno, verdadeiro sistema por si, com os seus  anéis formados de corpúsculos conduzidos em uma rotação vertiginosa, e com os  seus oito satélites acompanhando-o qual um celeste  cortejo!
  À medida que subíamos, o nosso Sol ia diminuindo de grandeza. Bem  depressa desceu a categoria de estrela, depois perdeu toda a majestade, toda a  hegemonia sobre a população sideral, e não foi mais do que uma estrela, apenas  mais brilhante do que as outras.
  Eu  contemplava toda aquela imensidade estrelada, no meio da qual nos elevávamos  sempre, e procurava reconhecer as constelações; estas, porém, começavam a mudar  sensivelmente de formas, por motivo da diferença de perspectiva causada pela  minha viagem; a Via-Láctea estava submersa sob o nosso vôo, qual catarata de  sóis em fusão, tombando ao fundo do Infinito; as estrelas das quais nos  aproximávamos emanavam rutilâncias fantásticas, derramando uma espécie de rios  de luzes, irradiações de ouro e prata, cegando-nos de fulgurantes claridades.  Acreditei ver o nosso Sol, transformado insensivelmente  em uma estrelinha, reunir-se à constelação do Centauro, enquanto uma nova luz,  pálida, azulada, bastante estranha, chegava da região para a qual Urânia me  conduzia. Essa claridade nada tinha de terrestre e não me recordava nenhum dos  efeitos que eu havia admirado nas paisagens da Terra, nem entre os tons tão  cambiantes dos crepúsculos depois da tempestade, nem nas brumas indecisas da  manhã, nem durante as horas calmas e silenciosas do clarão da Lua no espelho do  mar. Este último efeito era talvez aquele de que esse aspecto mais se  aproximava, mas a estranha luz era, e cada vez se tornava mais verdadeiramente  azul, não de um reflexo de azul celeste ou de um contraste análogo ao que produz  a luz elétrica comparada à do gás, mas azulada igual a se o próprio Sol fosse  azul!
    
 Qual não foi a minha estupefação, quando me apercebi de que nos  aproximávamos, com efeito, de um sol absolutamente azul, igual a um disco  brilhante que houvesse sido recortado nos nossos mais belos céus terrestres,  destacando-se luminosamente em um fundo todo negro, todo constelado de  estrelas! Esse sol safira era o centro de um  sistema de planetas iluminados pela sua luz. Íamos passar pertinho de um desses  planetas. O sol azul crescia a olhos vistos; mas, novidade tão singular quanto a  primeira, a luz com que ele iluminava o dito planeta se complicava de um certo  lado com uma coloração verde. Olhei de novo para o céu e avistei um segundo sol  e esse de um belo verde-esmeralda! Não acreditava em meus  olhos.
   
 – Estamos atravessando – disse Urânia – o sistema solar de Gama de  Andrômeda, do qual ainda não vês mais do que uma parte, pois ele se compõe, na  realidade, não desses dois sóis, mas de três, um azul, um verde, e um  amarelo-laranja. O sol azul, que é o menor, gira em torno do sol verde, e este  gravita com seu companheiro em redor do grande sol alaranjado que vais avistar  dentro em pouco.
   
 Com  efeito, vi logo aparecer um terceiro sol, colorido dessa ardente irradiação,  cujo contraste com seus dois companheiros produzia a mais estranha das  claridades. Conhecia bem tão curioso sistema sideral, por  tê-lo mais de uma vez observado com o telescópio; mas, não suspeitava sequer o  seu verdadeiro esplendor. Que fornalhas, que deslumbramentos. Que vivacidade de  cores nessa estranha fonte de luz azul, nessa iluminação verde do segundo sol, e  nessa irradiação de ouro fulvo do terceiro!
  
 Mas, havíamo-nos aproximado, conforme disse, de um dos mundos  pertencentes ao sistema do sol safira. Tudo era azul: paisagens, águas, plantas,  rochedos, levemente esverdeados do lado que recebia luz do segundo sol, e apenas  tocadas dos raios do sol alaranjado que se erguia no horizonte longínquo. À  medida que penetrávamos na atmosfera desse mundo, uma suave música, deliciosa,  erguia-se nos ares à semelhança de um perfume, de um sonho. Jamais eu ouvira  coisa igual. A doce melodia, profunda, distante, parecia vir de um conjunto de  harpas e violinos sustentado por um acompanhamento de órgão. Era um canto  delicado, que inebriava desde o primeiro momento; que não carecia de análise  para ser compreendido e enchia a alma de volúpia. Parecia-me que teria ficado  uma eternidade a ouvi-lo; não ousei dirigir a palavra ao meu guia, tanto receava  perder-lhe uma nota. Urânia apercebeu-se. Estendeu a mão para um lago e com o  dedo indicou um grupo de seres alados que pairavam por cima das águas  azuis.
  
 Não tinham a forma humana terrestre. Eram criaturas evidentemente  organizadas para viver no ar. Pareciam tecidas de luz. De longe, tomei-as, a  princípio, por libélulas: tinham-lhes a forma esbelta e elegante, as vastas  asas, a vivacidade, a ligeireza. Mas, examinando-as de mais perto, notei seu  porte, que não era inferior ao nosso, e reconheci, pela expressão dos olhares,  que não eram animais.
   
 As suas  cabeças pareciam-se igualmente com as das libélulas, e, à semelhança dessas  criaturas aéreas, não tinham pernas. A música deliciosa que eu ouvia não era  senão o ruído de seu vôo.
  
 Eram  numerosíssimas, vários milhares talvez. Viam-se, nos cimos das montanha, plantas  que não eram nem árvores, nem flores. Erguiam débeis hastes a enormes alturas, e  esses talos ramificados sustentavam, parecendo braços estendidos, amplas taças  em forma de tulipas. Essas plantas eram animadas, pelo menos no grau das nossas  sensitivas, e mais ainda; e, igual ao desmódio (planta que tem forma de  borboleta) de folhas móveis, manifestavam por movimentos as suas impressões  interiores. Esses pequenos bosques formavam verdadeiras cidades vegetais. Os  habitantes daquele mundo não tinham outras moradas além de tais plantas, e era  no meio dessas perfumadas sensitivas que repousavam, quando não flutuavam nos  ares.
   
 – Este  mundo parece fantástico – disse Urânia – e a ti próprio perguntas que idéias  podem ter tais seres, que costumes, que história, que espécie de artes, de  literatura e de ciências. Longo seria responder a todas as perguntas que  poderias fazer. Fica sabendo unicamente que seus olhos  são superiores aos melhores telescópios; que seu sistema nervoso vibra à  passagem de um cometa e descobre eletricamente fatos que na Terra jamais se  conhecerão. Os órgãos que estás vendo abaixo das asas lhes servem de mãos, mais  hábeis que as vossas.
   Por imprensa têm eles a fotografia direta dos acontecimentos e  a fixação fônica das próprias palavras. Não se ocupam, de resto, senão de  pesquisas científicas, isto é, do estudo da Natureza. As três paixões que  absorvem a maior parte da vida terrestre, o ávido desejo da riqueza, a ambição  política e o amor lhes são desconhecidas, porque de nada carecem para viver, nem  há divisões internacionais, nem outro governo além de um conselho de  administração, e porque são andróginos  (ambisséxuos).
  – Andróginos! repliquei. E ousei acrescentar: Será  melhor?
  – Coisa  diversa. São grandes perturbações a menos em uma Humanidade. É  preciso – continuou ela – desprender-se inteiramente das sensações e das idéias  terrenas, para estar em situação de compreender a diversidade infinita  manifestada pelas diferentes formas da Criação. De igual modo que sobre o vosso  planeta as espécies têm mudado de idade em idade, desde os seres tão esquisitos  das primeiras épocas geológicas até o aparecimento da Humanidade; de igual  maneira que ainda agora a população animal e vegetal da Terra é composta das  mais diversas formas, desde o homem ao coral, desde a ave ao peixe, desde o  elefante à borboleta; assim também, e em uma extensão incomparavelmente mais  vasta, entre as inumeráveis terras do Céu, as forças da Natureza têm dado origem  a uma infinita diversidade de seres e de coisas. A forma  das criaturas é, em cada mundo, o resultado dos elementos especiais a cada  globo, substância, calor, luz, eletricidade, densidade, peso. As formas, os  órgãos, o número dos sentidos – vós outros tendes apenas cinco, e assim mesmo  bastante pobres – dependem das condições vitais de cada esfera. A vida é  terrestre na Terra, marciana em Marte, saturniana em Saturno, netuniana em  Netuno, em resumo, apropriada a cada mansão, ou, para dizer mais rigorosamente  ainda, produzida e desenvolvida por esse mundo em particular, conforme o seu  estado orgânico, e segundo uma lei primordial a que obedece a Natureza inteira:  a lei do progresso.
  
 Enquanto  ela me falava, tinha eu acompanhado com o olhar o vôo dos seres aéreos para a  cidade florida e vira com espanto as plantas a se moverem, erguendo-se ou  abaixando-se para recebê-los; o sol verde descera abaixo do horizonte e o sol  alaranjado levantara-se no céu; a paisagem estava adornada de coloração  esférica, sobre a qual pairava uma lua enorme, metade alaranjada, metade verde.  Então, a imensa melodia que musicava a atmosfera parou e, em meio de profundo  silêncio, ouvi um cântico, erguendo-se em voz tão pura que nenhuma voz humana  lhe pudera ser comparada.
  
 – Maravilhoso sistema – exclamei eu –, de tal mundo iluminado por  semelhantes clarões! São estrelas duplas, tríplices, múltiplas, vistas de  perto?
  
 – São  esplêndidos sóis – respondeu-me a deusa –, graciosamente associados nos laços de  mútua atração. Vós outros as vedes, da Terra, embaladas duas a duas no seio dos  céus, sempre belas, sempre luminosas, puras sempre. 
  
 Suspensas  no Infinito, apóiam-se uma na outra sem jamais se tocarem, tal qual se a sua  união, mais moral que material, fosse regida por um princípio invisível, e,  seguindo harmoniosas curvas, gravitam em cadência em torno uma da outra,  celestes casais desabrochados na primavera da Criação, nas campinas consteladas  da imensidade. Enquanto os sóis simples qual o vosso brilham solitários, fixos,  tranqüilos, nos desertos do Espaço, os sóis duplos e múltiplos parecem animar,  com os seus movimentos, a sua coloração e vida, as silenciosas regiões do eterno  vácuo. Esses relógios siderais marcam para vós outros os  séculos e as eras dos outros universos. Mas – acrescentou –, continuemos a nossa  viagem. Estamos apenas a alguns trilhões de léguas da  Terra.
  
 – Alguns trilhões?
  
 – Sim. Se pudéssemos ouvir daqui os ruídos do vosso  planeta, os seus vulcões, a sua artilharia, os seus trovões, os alaridos das  grandes turbas nos dias de revolta, ou os cânticos piedosos das igrejas que se  elevam para o Céu, a distância é tal que, admitindo pudessem esses ruídos  transpô-la com a velocidade do som no ar, eles não  empregariam menos de cento cinqüenta mil séculos para chegar até aqui.  Ouviríamos hoje unicamente o que se passara na Terra há quinze milhões de  anos.
  
 “Entretanto, achamo-nos ainda, em relação à imensidade do  Universo, mui próximo da tua Pátria. Continuas a reconhecer o teu Sol, lá em  baixo, pequenina estrela. Não saímos do universo a que ele pertence com o seu  sistema de planetas.
  
 “Esse universo se compõe de muitos milhares de sóis, separados uns  dos outros por trilhões de léguas.
  
 “É tão considerável a sua extensão, que um relâmpago, com a  velocidade de trezentos mil quilômetros por segundo, empregaria quinze milênios  em transpô-la.
  
 “E por toda parte sóis, para qualquer lado que volvamos o olhar; por  toda a parte fontes de luz, de calor e de vida, fontes de inexaurível variedade,  sóis de todos os esplendores, de todas as grandezas, de todas as idades,  sustentados no eterno vácuo, no éter luminífero, pela atração mútua de todos e  pelo movimento de cada um. 
  
 Cada estrela, sol enorme, gira sobre si mesma,  qual esfera de fogo, e voga rumo a um fim. Vosso Sol caminha  e vos leva para a constelação de Hércules; este, cujo sistema acabamos de  atravessar, caminha para o sul das Plêiades; Sirius se precipita para a Pomba;  Pólux se dirige para a Via-láctea; todos esses milhões, todos esses bilhões de  sóis correm através da imensidão com velocidades que atingem duzentos, trezentos  e quatrocentos mil metros por segundo! É o movimento que sustenta o  equilíbrio do Universo, que lhe constitui a organização, a energia e a  vida.”
 
 
  Desde  muito tempo já, o sistema tricolor tinha fugido sob o nosso vôo. Passamos pela vizinhança de grande número de mundos bem  diferentes da pátria terrestre. Uns pareceram-me inteiramente cobertos de água e  povoados de seres aquáticos; outros unicamente habitados por plantas. Alguns se  acham absolutamente desprovidos de água: são os que pertencem a sistemas  idênticos ao da estrela Alfa de Hércules – privados de hidrogênio. Outros  parecem em labaredas. Paramos perto de muitos. Que inimaginável  variedade!
  
 Sobre um de entre eles, as rochas, as plantas e as paisagens  reenviam, durante as horas da noite, a luz que receberam e acumularam no decurso  do dia. Talvez o fósforo constitua importante contingente na composição desses  corpos. É um mundo muito estranho, onde a noite é desconhecida, embora seja  desprovido de satélites. Parece que seus habitantes desfrutam de uma propriedade  orgânica muito preciosa: são conformados de tal sorte que percebem todas as  funções da manutenção vital do organismo. De cada molécula do corpo, por assim  dizer, parte um nervo que transmite ao cérebro as impressões variadas que  recebe, de maneira que o homem se vê interiormente e conhece, de início, todas  as causas das doenças, os menores sofrimentos, os quais são detidos desde os  seus germens.
  
  
 Em outro globo, que atravessamos também durante a noite, isto é,  do lado do seu hemisfério noturno, os olhos humanos estão organizados de tal  sorte que são luminosos, alumiam, qual se alguma emanação fosforescente  irradiasse do seu estranho foco. Uma reunião noturna, composta de grande número  de pessoas, oferece aspecto verdadeiramente fantástico, por isso que a  claridade, e assim a cor dos olhos, muda conforme as diversas paixões que as  animam. Além disso, o poder desses olhares é tal que exercem influência elétrica  e magnética de intensidade variável e, em certos casos, podem fulminar, fazer  cair morta à vítima na qual se fixe toda a energia da sua  vontade.
  
 Um pouco  mais longe, o meu guia celeste assinala um mundo onde os organismos gozam de  preciosa faculdade: a Alma pode mudar de corpo, sem  passar pela circunstância da morte, muitas vezes desagradável, e sempre  triste. 
 Um sábio, que trabalhou a vida inteira pela instrução da  Humanidade, e vê chegar o fim de seus dias sem haver terminado os nobres  empreendimentos, pode mudar de corpo com um adolescente e recomeçar uma vida  nova, mais útil ainda do que a primeira. 
  
 Para essa transmigração basta o consentimento do adolescente e  a operação magnética de um médico competente. Vêem-se também, às vezes, dois  entes, unidos pelos tão suaves e fortes laços do amor, operar igual mudança de  corpo, após vários lustros de união: a Alma do esposo vem habitar o corpo da  esposa, e vice-versa, pelo resto da existência. 
  
 O conhecimento íntimo da vida se torna incomparavelmente mais  completo para cada um deles. Vêem-se também sábios, historiadores, desejosos de  viver dois séculos em vez de um, mergulhar em sonos fictícios de hibernação  artificial, que lhes suspendem a vida durante metade de cada ano e mesmo mais.  Alguns conseguem até viver três vezes mais tempo do que a vida normal dos  centenários.
  
 Momentos depois, atravessando outro sistema, encontramos um gênero de  organizações inteiramente diverso e, com segurança, superior ao nosso. Nos  habitantes do planeta que tínhamos então sob os olhos, mundo iluminado por  brilhante sol hidrogenado, o pensamento não é obrigado a passar pela palavra  para manifestar-se. Quantas vezes não tem acontecido, quando uma idéia luminosa  ou engenhosa nos vem ocupar o cérebro, querer exprimi-la ou escrevê-la, e,  durante o tempo em que começamos a falar ou escrever, sentir já a idéia  dissipada, esvaída, obscurecida ou metamorfoseada? Os habitantes desse planeta  possuem um sexto sentido, a que se poderia chamar autotelegráfico, em virtude do  qual, se o que pensa a isso não se opõe, o pensamento se comunica ao exterior e  pode ser lido em um órgão situado mais ou menos no mesmo lugar da fronte humana.  Essas conversações silenciosas são muitas vezes as mais profundas e as mais  preciosas; são sempre as mais sinceras.
  
  
 Somos ingenuamente dispostos a crer que a organização  humana nada deixa a desejar na Terra. Entretanto, não temos muitas vezes  lamentado ser a criatura obrigada a ouvir, mal grado seu, palavras  desagradáveis, um discurso absurdo, um sermão orgulhoso em vácuo, música  péssima, maledicências ou calúnias? 
  
 As nossas  gramáticas têm pretendido que podemos fechar os ouvidos a esses discursos, assim  não é, infelizmente. Não podemos fechar os ouvidos, tal qual fechamos os olhos.  Há aí uma lacuna. Fiquei surpreendidíssimo de assinalar um planeta onde a  Natureza não esqueceu essa particularidade. Porque nos houvéssemos detido nele  um momento, mostrou-me Urânia esses ouvidos que se fechavam à maneira de  pálpebras e interceptavam radicalmente a transmissão do som. Há aqui, disse-me  ela, muito menos cóleras surdas do que entre vós outros; mas as dissidências  entre os partidos políticos são muito mais acentuadas, não querendo os  adversários ouvir coisa alguma, e triunfando efetivamente, apesar dos mais  loquazes advogados e dos tribunos dotados de melhores pulmões.
  
 Em outro  mundo, cuja atmosfera está constantemente eletrizada, cuja temperatura é muito  alta, e onde os habitantes têm tido quase ou nenhuma razão suficiente para  inventar vestimentas, certas paixões se traduzem pela iluminação de uma parte do  corpo. É, por analogia, o que se passa, em menor escala, em nossas campinas  terrestres, onde se vêem, durante as serenas noites de estio, os pirilampos  consumindo-se, silenciosamente, em amorosa flama. 
  
 O aspecto  dos casais luminosos é curioso de observar, à noite, nas grandes cidades. A cor  da fosforescência difere segundo os sexos, e a intensidade varia segundo as  idades e os temperamentos. O sexo forte acende uma flama vermelha, mais ou menos  ardente, e o sexo gracioso uma flama azulada, às vezes pálida e discreta. Só os  nossos pirilampos poderiam formar uma idéia, muito rudimentar, da natureza das  impressões sentidas por esses entes especiais. Não queria eu dar crédito a meus  olhos quando atravessávamos a atmosfera de tal planeta; porém, ainda muito mais  surpreendido fiquei, chegando ao satélite desse mundo  singular.
  
 Era uma  lua solitária, iluminada por uma espécie de sol crepuscular. Sombrio vale  ofereceu-se aos nossos olhares. Das árvores disseminadas nos dois lados pendiam  criaturas humanas envoltas em sudários. Tinham-se elas mesmas atadas aos ramos,  pela cabeleira, e dormiam ali no mais profundo silêncio. O que eu tomara por  sudários era um tecido formado pelo alongamento dos cabelos emaranhados e  encanecidos. E porque me admirasse de semelhante posição, disse Urânia que era  aquele o seu modo habitual de sepultamento e de ressurreição. Sim, naquele mundo  os entes humanos gozam da faculdade orgânica dos insetos, que têm o dom de  dormir no estado de crisálida para se metamorfosearem em aladas borboletas. Há  nisso uma espécie de dupla raça humana, e os estagiários da primeira fase, os  seres mais grosseiros e materiais, não aspiram senão a morrer, para ressuscitar  na mais esplêndida das metamorfoses. Cada ano desse mundo  representa cerca de dois séculos terrestres. Vivem-se ali dois terços de ano em  estado inferior, um terço (o inverno) em estado de crisálida e, na primavera  seguinte, sentem, os suspensos, gradualmente a vida voltar à carne transformada;  agitam-se, despertam, deixam a carcaça na árvore e, desprendendo-se,  maravilhosos entes alados voam nas regiões aéreas, para viver aí um novo ano  fenixiano, isto é, duzentos dos de nosso rápido  planeta.
  
 Atravessamos, assim, grande número de sistemas e parecia-me que a  eternidade inteira não teria sido bastante longa para permitir-me gozar de todas  essas criações desconhecidas na Terra; mas meu guia me deixava apenas o tempo  para respirar, e novos sóis e mundos continuavam aparecendo. Em nosso trajeto  tínhamos quase abalroado uns cometas transparentes que erravam, quais sopros, de  um a outro sistema, cujas Humanidades teriam sido novos assuntos de estudo.  
  
 Os cinco pobres sentidos incompletos, que constituem a nossa  bagagem orgânica, são verdadeiramente insignificantes à riqueza de percepções  dos seres munidos de quinze, dezoito e mesmo vinte e seis sentidos diferentes,  conforme constatamos em muitas terras do céu. 
  
 No  entanto, a musa celeste continuava a levar-me sem parar, sempre cada vez mais  alto, cada vez mais longe, até que, enfim, chegamos ao  que me pareceu o subúrbio do Universo. 
  
 Os sóis tornavam-se mais raros, menos luminosos, mais pálidos; a  noite se fez mais completa entre os astros e em breve nos achamos no meio de  verdadeiro deserto; os milhares de estrelas que constituem o Universo visível da  Terra estavam afastados e reduzidos a uma pequena via-láctea, isolada no vácuo  infinito.
  
 – Eis-nos  finalmente, exclamei, nos limites da Criação!
 – Olha!  respondeu-me ela, mostrando-me o zênite.
  O tempo, o espaço e a vida - Os horizontes  celestes
  Quê! Era verdade? Outro universo descia em nosso rumo! Milhões e  milhões de sóis grupados planavam, novo arquipélago celeste, e se iam  desenvolvendo qual vasta nuvem de estrelas, à proporção que subíamos. Tentei  sondar com a vista, em torno de mim, em todas as profundezas, o Espaço infinito,  e por toda parte avistei clarões análogos, montões de estrelas disseminados em  todas as distâncias.
  
 O novo universo em que penetrávamos era principalmente composto de  sóis vermelhos, rubis e granadas. Muitos tinham absolutamente a cor do  sangue.
  
 Sua  travessia foi uma verdadeira fulguração. Corríamos rapidamente de sol em sol,  mas incessantes comoções elétricas nos atingiam, à semelhança dos clarões de uma  aurora boreal. 
  
 Que estranhos estádios, esses mundos iluminados unicamente de sóis  rubros! Depois, em um distrito desse universo, notamos um grupo secundário,  composto de grande número de estrelas cor de rosa e outras azuis. De súbito,  precipitou-se em nosso rumo, e nos envolveu, um enorme cometa, cuja extremidade  dianteira semelhava uma goela colossal. Aconcheguei-me com terror à ilharga da  deusa, que durante um momento desapareceu da minha vista em luminosa névoa. Mas  nos tornamos a encontrar em escuro deserto, pois que esse segundo universo se  afastara igual ao primeiro.
  
 – A Criação, disse-me ela, se compõe de um número  infinito de universos distintos, separados uns dos outros por abismos de  nada.
  
 – Um número infinito?
  
 – Objeção  matemática, replicou. Sem dúvida, um número, por muito grande que seja, não pode  ser presentemente infinito, pois que, pelo pensamento, se pode aumentá-lo sempre  de uma unidade, ou mesmo duplicá-lo, triplicá-lo, centuplicá-lo. Lembra-te, porém, de que o momento atual não é mais do que uma  porta por onde o futuro se precipita para o passado. A eternidade não tem fim, e  o número dos universos será, ele também, sem fim. Além disso, as estrelas, os  sóis e os universos não formam um número. Eles são, por melhor dizer, sem  número. Olha! Vês ainda, sempre e por toda parte, novos arquipélagos de ilhas  celestes, novos universos.
  
 – Parece-me, ó Urânia, que há muito tempo já, e com grande  velocidade, estamos subindo no céu sem limites!
  
 – Poderíamos sempre subir assim, respondeu ela, sem jamais atingir  um limite definitivo. Poderíamos vogar para a esquerda, para a direita, para  frente, para trás, para baixo, para não importa qual direção, e jamais, em parte  nenhuma, depararíamos uma fronteira... Nunca, nunca um fim. Sabes onde estamos?  Sabes que caminho temos percorrido? Estamos... no vestíbulo do Infinito, tal  qual o estávamos na Terra. Não temos avançado um único  passo!
  
 Grande  comoção se apoderara do meu Espírito. As últimas palavras de Urânia tinham-me  penetrado até à medula, qual calafrio glacial. Nunca um fim, nunca, nunca!  repetia eu. E não podia dizer, nem pensar outra coisa. Entretanto, a  magnificência do espetáculo reapareceu a meus olhos e o aniquilamento cedeu  lugar ao entusiasmo.
  
 – A Astronomia! exclamei. É tudo! Saber estas coisas; viver no  infinito. Urânia! Que é o resto das idéias humanas perante a Ciência! Sombras,  fantasmas!
  
  
 – Oh! disse ela, tu vais despertar na Terra, tu admirarás ainda, e  legitimamente, a ciência de teus mestres; mas, fica sabendo: a Astronomia atual  das suas escolas e dos observatórios, a Astronomia matemática, a bela ciência  dos Newton, dos Laplace, dos Le Verrier, não é ainda a ciência  definitiva.
  
  
 “Não está lá, meu filho, o fim que busco desde os dias de Hiparco  e de Ptolomeu. Vê esses milhões de sóis análogos àquele que dá vida à Terra e,  tal qual ele, fontes de movimento, de atividade e de esplendor; pois bem, é esse  o objeto da ciência futura: o estudo da vida universal e eterna. Até hoje, não  se há penetrado no templo. Os algarismos não são um fim, mas um meio; não  representam o edifício da Natureza, mas os métodos, os andaimes. Vais assistir à  aurora de um novo dia. A Astronomia matemática vai ceder o lugar à Astronomia  física, ao verdadeiro estudo da Natureza.
  
  
 “Sim – acrescentou –, os astrônomos, que calculam os movimentos  aparentes dos astros na sua passagem de cada dia pelo meridiano; os que anunciam  a chegada dos eclipses, dos fenômenos celestes, dos cometas periódicos; os que  observam com tanta atenção as posições exatas das estrelas, dos planetas de  vários graus da esfera celeste; os que descobrem os cometas, os planetas das  estrelas variáveis; os que buscam e determinam as perturbações produzidas nos  movimentos da Terra, pela atração da Lua e dos planetas; os que consagram suas  vigílias à descoberta dos elementos fundamentais do sistema do mundo; todos,  observadores ou calculistas, são os preparadores de materiais, precursores da  nova Astronomia.
  
  
  São  imensos trabalhos, labores dignos de admiração, transcendentes obras que põem em  evidência as mais elevadas faculdades do espírito humano. Mas é o exército do  passado. Matemáticos e geômetras. Doravante o coração dos sábios vai pulsar por  uma conquista mais nobre ainda. Todos esses grandes Espíritos, estudando o céu,  não têm, na realidade, saído da Terra. O fim da Astronomia não é mostrar a  situação aparente de pontos brilhantes, nem pesar pedras em movimentos no  Espaço, nem nos fazer conhecer com antecedência os eclipses, as fases da Lua ou  as marés. Tudo isso é belo, mas insuficiente.
  
 “Se a  vida não existisse na Terra, este planeta seria absolutamente destituído de  interesse para qualquer espírito que fosse, e a mesma reflexão se pode aplicar a  todos os mundos, que gravitam em torno de milhares de sóis, nas profundezas da  imensidade. A vida é o fim da Criação inteira. Se não houvesse vida, nem  pensamento, tudo isto seria como que nulo e não acontecido. A Criação é um  poema, do qual cada letra é um sol. Estás  destinado a assistir a uma completa transformação da Ciência. A Matéria vai  ceder lugar ao Espírito.”
  
  
  
 – A vida universal! – disse eu –. Os planetas do nosso sistema  solar serão todos habitados?... São habitados os milhares de mundos que povoam o  infinito?... Essas Humanidades assemelham-se à nossa?... Conhecê-las-emos algum  dia?...
  
  
 – A época em que vives na Terra, a própria duração da Humanidade  terrestre não é mais do que um momento na eternidade.
  
 Não  compreendi essa resposta às minhas perguntas.
  
 – Nenhuma razão há, acrescentou Urânia, para que todos os mundos  sejam habitados agora. A época presente não tem mais importância do que as  precedentes ou as que se hão de seguir.
  
  
 “A duração da existência da Terra será muito mais longa –  talvez dez vezes mais longa – do que a do seu período vital humano. Em uma  dezena de mundos, tomados ao acaso na imensidade, poderíamos, por exemplo,  conforme os casos, achar apenas um atualmente habitado por uma raça inteligente.  Uns o foram outrora; outros sê-lo-ão no futuro; estes se acham em via de  preparação, aqueles têm percorrido todas as suas fases; aqui, berços; além,  túmulos; e depois, uma variedade infinita se revela nas manifestações das forças  da Natureza, não sendo a vida terrestre de modo algum o tipo da vida  extraterrestre. Seres podem viver em organizações inteiramente diversas das  conhecidas no vosso planeta. Os habitantes dos outros não têm a vossa forma, nem  os vossos sentidos. São outros.
  
  
 “Dia virá, e mui proximamente, pois que estás chamado a vê-lo, em que  o estudo das condições da vida nas diversas províncias do Universo será o objeto  essencial – e o grande encanto – da Astronomia. Bem depressa, em vez de se  ocuparem simplesmente com a distância, com o movimento e com a massa material  dos vossos planetas vizinhos, os astrônomos descobrir-lhe-ão a constituição  física, os aspectos geográficos, a climatologia, a meteorologia; penetrarão o  mistério da sua organização vital e discutirão a respeito dos respectivos  habitantes. Afirmarão que Marte e Vênus se acham atualmente povoados de seres  pensantes; que Júpiter está ainda no seu período primário de preparação  orgânica; que Saturno plana em condições inteiramente diferentes das que  presidiram ao estabelecimento da vida terrena e, sem jamais passar por estado  análogo ao da Terra, será habitado por seres incompatíveis com os organismos  terrestres. Novos métodos farão conhecer a constituição  física e química dos astros, a natureza das atmosferas. Instrumentos  aperfeiçoados permitirão mesmo descobrir os testemunhos diretos da existência  dessas Humanidades planetárias e pensar em estabelecer comunicação com  elas. Eis a transformação científica que há de assinalar o fim do  décimo-nono século e que há de inaugurar o vigésimo.”
  
 Eu  escutava, enlevado, as palavras da musa celeste, que iluminavam para mim, com  luz inteiramente nova, os destinos da Astronomia e me inundavam de ardor mais  vivo ainda. Tinha sob os olhos o panorama dos mundos inumeráveis que rolam no  Espaço, e compreendi que o fim da Ciência devia ser tornar conhecidos esses  longínquos universos, fazer-nos viver nesses horizontes imensos. A formosa deusa  continuou:
  
 – A missão da Astronomia será mais elevada ainda. Depois de vos  haver feito sentir e dado a conhecer que a Terra não é mais do que uma cidade na  pátria celeste e que o homem é cidadão do céu, irá mais longe. Descobrindo o  plano sobre o qual o universo físico está construído, mostrará que o universo  moral se acha alicerçado sobre esse mesmo plano; que os dois mundos não formam  senão um mesmo mundo e que o Espírito governa a Matéria. O que ela houver feito  quanto ao Espaço, realizará quanto ao Tempo.
  
  
 “Depois de haver apreciado a imensidade do Espaço, e reconhecido  que as mesmas leis reinam simultaneamente em todos os lugares e fazem do  imensurável Universo uma exclusiva unidade, sabereis que os séculos do passado e  do futuro estão associados ao tempo presente, e que as mônadas pensantes viverão  eternamente, por transformações sucessivas e progressivas; aprendereis que há  Espíritos incomparavelmente superiores aos maiores Espíritos da Humanidade  terrestre, e que tudo progride para a perfeição suprema; ficareis sabendo também  que o mundo material não é mais do que uma aparência e que o ser real  consiste em uma força imponderável, invisível e  intangível.
  
 “A  Astronomia será, pois, eminentemente e antes de tudo, a diretriz da Filosofia.  Os que raciocinarem fora dos conhecimentos astronômicos  ficarão à margem da Verdade. Os que, fiéis, seguirem o seu fanal, irão subindo  gradualmente na solução dos grandes problemas.
  
 “A filosofia astronômica será a religião dos espíritos  superiores.
  
 “Deves  assistir, acrescentou ela, a essa dupla transformação da Ciência. Quando  deixares o mundo terrestre, a ciência astronômica, que tão legitimamente já  admiras, estará de todo renovada, tanto na forma quanto na  essência.
  
 “Isso,  porém, não é tudo. A renovação de uma ciência antiga pouco serviria ao progresso  geral da Humanidade, se esses sublimes conhecimentos, que desenvolvem o  Espírito, iluminam a Alma e a libertam das mediocridades sociais, ficassem  encerrados no acanhado círculo dos astrônomos de profissão. Esse tempo vai  passar também. O alqueire deve ser entornado. Cumpre empunhar o facho,  aumentar-lhe o fulgor, levá-lo às praças públicas, às ruas populosas, até às  mais escusas vielas. Todo o mundo é chamado a receber a luz; estão todos  sequiosos dela, principalmente os humildes, principalmente os deserdados da  fortuna, pois esses pensam mais, estão ávidos de ciência, enquanto que os  satisfeitos do século nem suspeitam da sua própria ignorância e têm quase  orgulho em permanecer assim. Sim, a luz da Astronomia deve ser espalhada pelo  mundo; deve penetrar até as massas populares, iluminar as consciências, elevar  os corações. E será essa a sua mais bela missão; será esse o seu  benefício.”
 
 
  O planeta Marte - A aparição de Spero -
As comunicações  psíquicas - Os habitantes de  Marte
 Tinha  sido ludíbrio de um sonho?
  
 O meu  Espírito se transportara realmente ao planeta Marte, ou fora vítima de uma  ilusão absolutamente imaginária?
  
 Tão  vivo, tão intenso havia sido o sentimento da realidade, e as coisas que vira se  achavam tão perfeitamente concordes com as noções científicas que possuímos já  sobre a natureza física do mundo marciano, que eu não podia aceitar uma dúvida a  esse respeito, conservando-me estupefato dessa viagem extática, e a mim próprio  dirigindo mil perguntas que se combatiam umas às outras.
  
 A  ausência de Spero, em toda essa visão, intrigava-me um tanto. Continuava a  sentir-me tão intimamente ligado à sua querida lembrança, que me parecia devera  ter adivinhado a sua presença, voar diretamente para ele, vê-lo, falar-lhe,  ouvi-lo. Mas não teria o magnetizado de Nancy sido ludíbrio da sua própria  imaginação, ou da minha, ou da do experimentador? Por outra parte, admitindo  mesmo que os meus dois amigos estivessem realmente reencarnados naquele planeta  vizinho, eu respondia, a mim próprio, que pessoas podem perfeitamente não se  encontrar, percorrendo a mesma cidade, e, com muito maior razão, um mundo. E, no  entanto, não era decerto o cálculo das probabilidades que se devia invocar para  o caso, pois o sentimento de atração, da força daquele que nos ligava, devia  modificar o acaso dos encontros e pôr na balança um elemento que o fizesse  vencer tudo o mais. Assim discorrendo comigo mesmo, recolhi-me ao meu  observatório de Juvisy, onde preparara algumas baterias elétricas para uma  experiência de óptica, em correspondência com a torre de Montlhery. Quando me  certifiquei de que tudo estava bem em ordem, entreguei ao meu ajudante o cuidado  de fazer os sinais convencionados, das dez às onze horas, e parti, eu próprio,  para a velha torre, na qual me instalei uma hora depois. Caíra a noite. Do alto  do antigo torreão, o horizonte é perfeitamente circular, e destacado em toda a  sua circunferência, que se estende em um raio de 20 a 25 quilômetros em redor  daquele ponto central. Um terceiro posto de observação, situado em Paris, estava  em comunicação conosco. O fim da experiência era saber se os raios de diversas  cores do espectro luminoso viajam todos com a mesma velocidade de 300.000  quilômetros por segundo. O resultado foi afirmativo.
  
 Tendo  as experiências ficado concluídas às onze horas, mais ou menos, e porque a noite  estrelada estivesse maravilhosa e a Lua começasse a erguer-se, logo que coloquei  os aparelhos ao abrigo do tempo, no interior da torre, subi para a plataforma  superior, a fim de contemplar a imensa paisagem iluminada pelos primeiros raios  da lua nascente. A atmosfera estava serena, tépida, quase  quente.
  
 O meu  pé, porém, ainda estava no último degrau, quando estaquei, petrificado de  espanto; soltando um grito que pareceu imobilizar-se na garganta. Spero, sim, o  próprio Spero estava ali, diante de mim, sentado no parapeito. Levantei os  braços para o céu, e me senti prestes a perder os sentidos; ele, porém, me  disse, com a sua voz extremamente meiga, que eu tanto e tanto  conhecia:
  
 – Porventura te causo medo?
 Não  tive forças para responder, nem para adiantar-me. Contudo, ousei olhar de frente  para o meu amigo, que sorria. O seu querido semblante, iluminado pelo luar,  conservava-se tal qual eu o havia visto por ocasião da partida de Paris para  Cristiânia, moço, agradável, pensativo, com um olhar muito brilhante. Deixei o  último degrau e tive o impulso íntimo de precipitar-me para ele, a fim de  abraçá-lo. Não me atrevi, porém, e conservei-me defronte dele,  contemplando-o.
 Tinha  recuperado o uso dos sentidos.
 – Spero  !... És tu ! – exclamei.
 – Estava aqui durante a tua experiência – respondeu ele –, e fui eu  mesmo quem te inspirou a idéia de comparar o extremo roxo ao extremo vermelho,  para a velocidade das ondas luminosas. Unicamente estava invisível, tanto quanto  os raios ultra-roxos.
 – Vejamos! é isto possível? Deixa-me  tocar-te.
 Passei  minha mão pelo rosto, pelo corpo, pelos cabelos, e tive absolutamente a mesma  impressão de haver tocado um corpo vivo. A minha razão se negava a admitir o  testemunho dos meus olhos, dos meus dedos e do meu ouvido e, no entanto, eu não  podia duvidar de que fosse ele. Não há sósia igual. E, depois, minhas dúvidas  ter-se-iam desfeito desde as suas primeiras palavras, pois que acrescentou  logo:
 – O meu  corpo, neste momento, está dormindo em Marte.
 – Assim  – disse eu –, tu continuas a existir, vives ainda... e conheces afinal a  resposta ao grande problema que tanto te atormentou... E  Icleia?
 Vamos  conversar – respondeu ele –. Tenho muitas coisas que te  dizer.
 Sentei-me a seu lado, na borda do largo parapeito que domina a  velha torre, e eis o que ouvi:
 Algum  tempo depois do acidente do lago de Tyrifjorden, sentira-se acordado do que  parecia um longo e pesado sono. Achava-se sozinho, em escuridão completa, à  beira de um lago; sentia-se vivo, mas não se podia ver, nem tocar em si mesmo. O  ar o feria. Não estava somente leve, mas também imponderável. O que lhe parecia  subsistir dele era somente a faculdade de  pensar.
 A sua  primeira idéia, reunindo as reminiscências, foi que despertava da queda no lago  norueguês. Quando, porém, amanheceu o dia, percebeu que se achava em outro  mundo. As duas luas que giravam rapidamente no firmamento, em sentido contrário  uma à outra, fizeram-no pensar que estava em nosso vizinho, o planeta Marte, e  não tardou que outros testemunhos tal lho  provassem.
 Conservou-se ali um certo tempo na condição de Espírito; reconheceu  a presença de uma Humanidade muito elegante, na qual predomina soberano o sexo  feminino, por incontestável superioridade sobre o sexo masculino. Os organismos  são leves e delicados; a densidade dos corpos é muito fraca, o peso mais fraco  ainda. Na superfície desse mundo a força material desempenha apenas um papel  secundário na Natureza; a delicadeza das sensações decide de tudo. Há ali grande  número de espécies de animais e várias raças humanas. Em todas essas espécies e  em todas essas raças, o sexo feminino é mais belo e mais forte (consistindo a  força na superioridade das sensações) do que o masculino, e é aquele que rege o  mundo.
 No  grande desejo de conhecer a vida que tinha diante de si, decidiu não se  conservar por muito tempo em estado de Espírito contemplador, mas renascer sob  uma forma corporal humana e, dada a condição orgânica daquele planeta, sob a  forma feminina.
 Entre  as almas terrestres flutuantes na atmosfera de Marte tinha ele encontrado já  (pois as almas se sentem) a de Icleia, que o seguira, guiada por uma atração  constante. Ela, por seu lado, sentira-se levada para uma encarnação  masculina.
 Estavam  assim reunidos ambos, em um dos mais privilegiados países desse mundo, vizinhos  e predestinados a novo encontro na vida e a partilhar das mesmas emoções, dos  mesmos pensamentos, das mesmas obras. Assim, conquanto a memória da sua  existência terrestre se conservasse velada e quase apagada pela nova  transformação, vago sentimento de parentesco e simpático apego imediato os havia  reunido logo que se tinham avistado. A superioridade psíquica, a natureza dos  seus pensamentos habituais, o estado de espírito acostumado a procurar os fins e  as causas, lhes haviam dado uma espécie de íntima penetração que os desprendia  da geral ignorância dos viventes. Tinham-se amado tão de súbito, haviam tão  passivamente sentido a influência magnética do choque de reencontro, que para  logo constituíram um mesmo e único ente, tão unidos quanto o estavam no momento  da separação terrestre. Lembravam-se de se terem encontrado já, estavam  convencidos de que fora na Terra, nesse planeta vizinho que à noite brilha com  tão vivo fulgor no céu de Marte, e às vezes, em seus vôos solitários por sobre  as colinas povoadas de plantas aéreas, contemplavam a estrela da tarde,  procurando reatar o fio quebrado de uma tradição  interrompida.
 Inesperado acontecimento veio explicar tais reminiscências e provar  que não se enganavam.
 Os  habitantes de Marte são muito superiores aos da Terra, pela sua organização,  pelo número e pela delicadeza de seus sentidos, e pelas faculdades intelectuais.  O fato de ser a densidade muito fraca na superfície daquele mundo, e as  substâncias constitutivas dos corpos menos pesadas lá do que aqui, permitiu a  formação de seres incomparavelmente menos pesados, mais aéreos, mais sutis, mais  sensíveis. O fato de ser nutritiva a atmosfera, libertou os organismos marcianos  das grosserias das necessidades terrestres. É totalmente outro estado. A luz ali  é menos viva, estando o planeta mais afastado do Sol do que a Terra; o nervo  óptico é mais sensível. Sendo ali intensíssimas as influências elétricas e  magnéticas, os habitantes possuem sentidos ignorados das organizações  terrestres, sentidos que os põem em comunicação com essas influências. Tudo se  contém na Natureza. Os seres, em toda parte, são apropriados aos meios em que  habitam e em cujo seio nasceram. Os organismos não podem mais ser terrestres em  Marte, de igual modo que não podem ser aéreos no fundo do  mar.
 Ademais, o estado de superioridade conseqüente dessa ordem de  coisas evoluiu por si mesmo, pela facilidade da realização de todo o trabalho  intelectual. A Natureza parece obedecer ao pensamento. O arquiteto que quer  levantar um edifício; o engenheiro que deseja modificar a superfície do solo,  quer se trate de levantar ou de cavar, de cortar montanhas ou de aterrar vales,  não se esbarram, qual acontece na Terra, com o peso dos materiais e nas  dificuldades da execução. Assim, têm a Arte feito, desde a origem, os mais  rápidos progressos.
 Além  disso ainda, sendo a Humanidade marciana várias dezenas de milhares de séculos  anterior à terrestre, tem percorrido anteriormente a esta todas as fases do seu  desenvolvimento. Os mais transcendentes progressos científicos atuais da Terra  não passam de pueris brinquedos de criança, comparados à Ciência dos habitantes  daquele planeta.
 Principalmente em astronomia estão mais adiantados e conhecem  melhor a Terra do que desta conhecem aquela  pátria.
 Inventaram eles, entre outros, uma espécie de aparelho  telefotográfico, no qual um rolo de estofo recebe perpetuamente,  desenrolando-se, a imagem do nosso mundo e a fixa inalteravelmente. Imenso  museu, consagrado especialmente aos planetas do sistema solar, conserva na ordem  cronológica todas essas imagens fotográficas fixadas para  sempre.
 Encontra-se ali a história toda da Terra; a França do tempo de  Carlos Magno, a Grécia do tempo de Alexandre, o Egito do tempo de Ramsés.  Microscópios permitem mesmo reconhecer ali os pormenores históricos, assim Paris  durante a revolução francesa, Roma sob o pontificado de Bórgia; a frota  espanhola de Cristóvão Colombo chegando à América; os Francos de Clóvis tomando  posse das Gálias; o exército de Júlio César detido na conquista da Inglaterra,  pela maré que lhe levou os navios; as tropas do Rei David, fundador dos  exércitos permanentes; e também a maior parte das cenas históricas,  reconhecíveis por certos caracteres especiais.
 Um dia  em que os dois antigos noivos visitavam esse museu, a reminiscência, vaga até  então, iluminou-se qual paisagem noturna atravessada por um relâmpago. De súbito  reconheceram o aspecto de Paris durante a Exposição de 1867. Acentuou-se-lhes a  lembrança. Cada um deles sentiu, separadamente, que tinha vivido ali, e, sob  essa impressão tão forte, foram logo dominados pela certeza de ali terem vivido  juntos. A memória avivou-se gradualmente, não já por intermitentes clarões, mas  qual a luz progressiva do começo da aurora.
 Lembraram-se então, ambos, sob a forma de inspiração, das palavras  do Evangelho: Há diversas moradas na casa de meu  Pai.
 Em  verdade te digo, se um homem não nasce de novo, não verá o reino de Deus...  Cumpre que nasças de novo.
 Desde  esse dia, não conservaram mais dúvida alguma sobre a sua anterior existência  terrestre; ficaram inteiramente convencidos de que continuavam, no planeta  Marte, a sua precedente vida. Pertenciam ao ciclo dos grandes Espíritos de todos  os séculos, os quais sabem que o destino não pára no mundo atual, e continua no  Céu, assim como cada planeta, Terra, Marte, ou qualquer outro, é um astro desse  Céu.
 O fato  bem singular da mudança de sexo, que se me afigurava ter certa importância, ao  que parece, não tinha nenhuma. Contrariamente ao que admitido entre os  terrestres, contou-me que as almas não possuem sexo e têm um destino igual.  Soube eu também que naquele planeta, menos material do que o nosso, a  organização em nada se assemelha à dos nossos corpos terrestres. As concepções e  os nascimentos efetuam-se ali de um modo inteiramente diverso, que lembra, mas  sob uma forma espiritual, a fecundação das flores e o seu desabrochar. O prazer  é sem azedume. Não se conhecem lá os pesados fardos terrestres, nem os  dilaceramentos da dor. Tudo é mais aéreo, mais etéreo, imaterial. Poder-se-ia  chamar aos marcianos flores viventes, aladas e pensantes. Mas, de fato,  nenhuma criatura terrestre pode servir de paralelo para auxiliar a compreensão  da forma e do modo de existência ali.
 Eu  escutava a narração da alma defunta, quase sem a interromper, pois me parecia  sempre que ela ia sumir-se, conforme tinha vindo. Entretanto, à lembrança do meu  sonho, que me havia acudido, pela coincidência das precedentes descrições com o  que eu tinha visto, não pude deixar de referir ao meu celeste companheiro esse  surpreendente sonho, e de exprimir-lhe o meu pasmo por não o ter visto nessa  viagem a Marte, o que me dizia duvidar da realidade de tal  excursão.
 – Mas –  replicou ele –, eu te vi perfeitamente, e tu me viste também, e me falaste...  Porque era eu...
 Tão  estranha foi a entonação da voz ao pronunciar as últimas palavras, que reconheci  nela, subitamente, a melodiosa voz da bela Marciana que tanto me  impressionara.
 – Sim –  prosseguiu ele –, era eu; procurava dar-me a conhecer; mas, deslumbrado por um  espetáculo que te cativara o Espírito, não te desprendias das sensações  terrestres; conservavas-te sensual e terrestre, e não conseguiste elevar-te à  pura percepção. Sim, fui eu quem te estendeu os braços para te fazer apear do  carro aéreo à porta da nossa morada, quando subitamente  despertaste.
 – Mas  então – exclamei –, se és essa Marciana, porque me apareces aqui sob a forma de  Spero, que já não existe?
 Não é  na tua retina nem no teu nervo óptico que atuo, replicou ele, mas no teu ser  mental e no teu cérebro. Acho-me neste momento em comunicação contigo;  influencio diretamente a sede cerebral da tua sensação. Na realidade, o meu ser  mental não tem forma, é igual ao teu, idêntico a todas as almas. Quando, porém,  me coloco – e é o caso neste momento – em relação direta com o teu pensamento,  não me podes ver senão tal qual me conheceste. Acontece o mesmo durante o sonho,  isto é, durante mais da quarta parte da vida terrestre – durante quatro lustros  sobre catorze – vedes, ouvis, falais, tocais com a mesma impressão, com a mesma  clareza, com a mesma segurança com que o fazeis durante a vida normal, de  vigília, e, no entanto, no sonho, os olhos estão fechados, o tímpano está  insensível, os lábios mudos, os braços estendidos sem movimento. A mesma coisa  se dá também nos estados de sonambulismo, de hipnotismo, de sugestão. Tu me vês,  tu me ouves e me tocas, pelo teu cérebro influenciado; porém, sob a forma que tu  vês eu não existo, de igual modo que não existe o arco-íris ante os olhos de  quem o contempla.
 – Poderias tu, porventura, aparecer-me também sob a tua forma  marciana?
 – Não;  a menos que sejas realmente transportado em Espírito àquele planeta. Seria um  modo de comunicação inteiramente diverso. Aqui, em nossa conversação, tudo é  subjetivo quanto a ti. Os elementos da minha forma em Marte não existem na  atmosfera terrestre, e o teu cérebro não os imaginaria. Não me poderias tornar a  ver senão pela lembrança do teu sonho de hoje; mas, desde que procurasses  analisar as minudências, a imagem se esvairia. Tu não nos viste exatamente tal  qual somos, porque o teu Espírito não pode julgar senão pelos olhos terrestres,  que não são sensíveis para todas as radiações, e porque os da Terra não possuem  todos os nossos sentidos.
 – Confesso – repliquei –, que não apreendo bem a vida marciana no  estado de entes de seis membros.
 – Se  suas formas não fossem tão elegantes, ter-te-iam parecido monstruosas. Cada  mundo tem os seus organismos apropriados às condições de existência.  Confesso-te, por minha vez, que, para os habitantes de Marte, o Apolo do  Belvedere e a Vênus de Médicis são verdadeiras monstruosidades, por motivo do  seu peso animal.
 “Entre  os marcianos, tudo é de extrema delicadeza. Conquanto o nosso planeta seja muito  menor do que a Terra, todavia os seres ali são maiores do que aqui, pois o peso  é mais fraco, e os organismos podem elevar-se mais alto sem ser impedidos pelo  seu peso e sem pôr em risco a correspondente  estabilidade.
 “São  maiores e mais leves, porque os materiais constitutivos desse planeta têm uma  densidade muito fraca. Aconteceu lá o que aconteceria na Terra, se o peso aqui  não fosse tão intenso. As espécies aladas teriam dominado o mundo, em vez de se  atrofiarem na impossibilidade de um desenvolvimento. Em Marte, o desenvolvimento  orgânico se efetuou na série das espécies aladas. A Humanidade marciana é, com  efeito, uma raça de origem sextúpede; atualmente, porém, é bípede, bímana, e o  que se poderia chamar bialada, pois que esses seres têm duas  asas.
 “O  gênero de vida é inteiramente diverso da vida terrestre, primeiramente porque se  vive tanto nos ares e nas plantas aéreas, quanto na superfície do solo; depois,  porque, sendo a atmosfera nutritiva, ali não se come. As paixões não são as  mesmas. O assassínio é desconhecido lá. Não tendo necessidades materiais, sua  Humanidade jamais viveu, mesmo nas idades primitivas, na barbárie da rapina e da  guerra. As idéias e os sentimentos são de uma ordem inteiramente  intelectual.
 “Contudo, encontram-se na morada daquele planeta, senão  semelhanças, ao menos analogias. Assim, há ali, quanto na Terra, uma sucessão de  dias e de noites que não difere essencialmente do que existe aqui, sendo de 24  horas, 39 minutos e 35 segundos a duração do dia e noite. Havendo 668 desses  dias no ano marciano, temos mais tempo para os nossos trabalhos, investigações,  estudos e divertimentos. As nossas estações são também quase duas vezes maiores  do que as deste mundo, mas têm a mesma intensidade. Os climas não são muito  diferentes; tal região de Marte, nas margens do mar equatorial, difere menos do  clima da França do que a Lapônia do da Núbia.
 “Um  habitante da Terra não se considera ali muito expatriado. A maior disparidade  entre os mundos consiste certamente na grande elevação da nossa Humanidade sobre  a da Terra.
 “Essa  superioridade é devida principalmente aos progressos realizados pela ciência  astronômica e à propagação universal, entre todos os habitantes do planeta,  dessa ciência sem a qual é impossível pensar com acerto, sem a qual não se tem  senão idéias falsas sobre a Criação, sobre os destinos. Somos muito favorecidos,  tanto pela agudeza dos nossos sentidos, quanto pela pureza de nosso céu. Há  muito menos água em Marte do que na Terra, e muito menos  nuvens.
 “O céu  ali é quase constantemente belo, em particular na zona  temperada.”
 – Entretanto, são freqüentes as  inundações.
 – Sim,  e muito recentemente ainda os telescópios da Terra assinalaram uma, bastante  extensa, ao longo das margens de um mar a que os teus colegas deram um nome que  me será sempre querido, mesmo distante da Terra. A maior parte das nossas plagas  são praias, planícies iguais. Poucas montanhas possuímos, e os mares não são  fundos. Os habitantes aproveitam esses transbordamentos para irrigação das  vastas campinas. Têm retificado, alargado, canalizado os cursos de água e  construído nos continentes uma rede inteira de imensos canais. Esses continentes  mesmos não são, qual os do globo terrestre, eriçados de elevações alpestres ou  himalaicas, mas planícies imensas, atravessadas em todos os sentidos pelos rios  canalizados e pelos canais que põem em comunicação todos os mares uns com os  outros.
 “Outrora havia, relativamente ao volume do planeta, quase tanta  água em Marte quanto na Terra. Insensivelmente, de século em século, uma parte  da água das chuvas atravessou as profundas camadas do solo e não tornou à  superfície. Combinou-se quimicamente com as rochas e foi excluída do curso da  circulação atmosférica. De século em século, também, as chuvas, as neves, os  ventos, os gelos do inverno, as secas do verão, têm desagregado as montanhas e  os cursos de água, trazendo esses destroços para a bacia do mar, cujo leito têm  gradualmente levantado. Não mais possuímos grandes oceanos, nem mares profundos,  mas unicamente mediterrâneos. Muitos estreitos, golfos, mares análogos à Mancha,  ao mar Vermelho, ao Adriático, ao Báltico, ao Cáspio. Praias lindíssimas,  enseadas mansas, lagos e espaçosos rios, frotas antes aéreas do que aquáticas,  céu quase sempre puro, principalmente pela manhã. A Terra não tem manhãs tão  luminosas quanto as nossas.
 “O  regime meteorológico difere sensivelmente do da Terra, porque, sendo a atmosfera  mais rarefeita, as águas, na superfície aliás, se evaporam mais facilmente;  depois porque, condensando-se novamente, em vez de formar nuvens duradouras,  tornam a passar, quase sem transição, do estado gasoso ao estado líquido. Poucas  nuvens e poucos nevoeiros.
 “A  Astronomia lá é cultivada por motivo da pureza do céu. Temos dois satélites cujo  curso pareceria estranho aos astrônomos da Terra, porque, enquanto um dá meses  de cento e trinta horas, ou de cinco dias marcianos e mais oito horas, o outro,  pela combinação do seu movimento com a rotação diurna do planeta, surge ao  Ocidente e desaparece no Levante, atravessando o céu de Oeste para Este em cinco  horas e meia, e passa de uma à outra fase em menos de três horas! É um  espetáculo único em todo o sistema solar, que muito tem contribuído para atrair  a atenção dos habitantes para o estudo do firmamento. Além disso, temos eclipses  de luas quase todos os dias; jamais, porém, eclipses totais do Sol, porque os  nossos satélites são muito pequenos.
 “A  Terra nos aparece no mesmo grau de Vênus para a Terra. É ela, para lá, a estrela  da manhã e da tarde e, na antiguidade, antes da invenção dos instrumentos de  óptica – os quais nos ensinaram que é um planeta habitado qual o nosso, mas  inferiormente, –, os nossos antepassados adoravam-na, saudando nela uma  divindade tutelar. Todos os mundos têm uma forma de mitologia durante os séculos  de infância, e essa mitologia tem por objeto o aspecto aparente dos corpos  celestes.
 “Às  vezes a Terra, acompanhada da Lua, passa por lá diante do Sol e se projeta sobre  o seu disco, qual uma pequena mancha negra acompanhada de outra menor. Então,  seguem todos com curiosidade esses fenômenos celestes. Nossos jornais tratam  muito mais de ciência do que de teatros, de fantasias literárias, de questões  políticas ou de tribunais.
 “O Sol  nos parece um tanto menor, e dele recebemos menos luz e menos calor. Nossos  olhos, mais sensíveis, vêem melhor do que os dos terrestres. A temperatura é um  pouco mais elevada.”
 – Quê!  – exclamei –; vós outros estais mais longe do Sol e sentis mais calor do que os  da Terra?
 – Chamounix fica um pouco mais distante do Sol do que o cimo do  Monte-Branco – respondeu ele –. Não é só a distância do Sol que regula as  temperaturas: cumpre levar em conta também a constituição da atmosfera. Os  nossos gelos polares se desfazem mais completamente do que os da Terra sob o  nosso Sol de verão.
 – Quais  são os países de Marte mais povoados?
 – Somente as regiões polares (onde da Terra se avistam as neves e  os gelos derretendo-se em cada primavera) são as inabitadas; a população das  regiões temperadas é muito densa; mas são, ainda assim, as terras equatoriais as  mais povoadas (a população é tão densa ali quanto a da China) e, principalmente,  às margens dos mares, apesar das enchentes. Grande número de cidades são  edificadas quase sobre a água, de algum modo suspensas nos ares, dominando as  inundações de antemão calculadas e esperadas.
 – As  artes e as indústrias assemelham-se às nossas? Há caminhos de ferro, navios a  vapor, o telégrafo, o telefone?
 – Isso  é diferente. Nunca tivemos vapor, nem caminhos de ferro, porque conhecemos  sempre a eletricidade, e a navegação aérea nos é natural. As nossas frotas são  movidas pela eletricidade e mais aéreas do que aquáticas. Vivemos principalmente  na atmosfera e não temos habitações de pedra, de ferro e de madeira. Não  conhecemos os rigores do inverno, porque ninguém ali fica exposto; os que não  habitam as regiões equatoriais emigram todo o outono, qual fazem os pássaros  aqui. Ser-te-ia muito difícil formar uma idéia exata do nosso gênero de  vida.
 – Existe em Marte grande número de humanos que tenham já habitado  na Terra?
 – Não.  Entre os cidadãos deste planeta, a maior parte são ignorantes, ou indiferentes,  ou cépticos, e não estão preparados para a vida do Espírito. Acham-se presos à  Terra, por muito tempo. Muitas almas dormem completamente. As que vivem,  trabalham, aspiram ao conhecimento do verdadeiro, são as únicas chamadas à  imortalidade consciente, as únicas a que o mundo espiritual interessa e estão  aptas para compreendê-lo. Essas almas podem deixar a Terra e reviver em outras  Pátrias. Algumas vão durante certo tempo habitar em Marte, primeira estação de  uma viagem ultraterrestre, afastando-se do Sol, ou Vênus, primeira parada aquém;  mas Vênus é um mundo análogo à Terra e menos privilegiado ainda, devido a suas  demasiado rápidas estações, que obrigam os organismos a sofrer os mais bruscos  contrastes de temperatura. Certos Espíritos voam imediatamente até às regiões  estreladas. Conforme sabes, o Espaço não existe. Em resumo, a justiça reina no  sistema do mundo moral, qual o equilíbrio no sistema do mundo físico, e o  destino das almas não é mais do que o resultado perpétuo das aptidões, das  aspirações, e, conseguintemente, das suas obras.
 “A  senda urânica está, aberta a todos, mas a alma não é verdadeiramente uraniana  senão quando se tem desprendido totalmente do peso da vida material. Dia virá em  que não haverá mais, neste planeta, outra crença, nem outra religião senão o  conhecimento do Universo e a certeza da imortalidade em suas infinitas regiões,  no seu domínio eterno.”
 – Que  estranha singularidade – exclamei –, não conhecer ninguém na Terra essas  sublimes verdades! Ninguém olha para o Céu. Vive-se aqui como se somente a nossa  ilhota existisse no mundo.
 – A  Humanidade terrestre é jovem, replicou Spero. Não se deve desanimar. É criança,  e está ainda na ignorância primitiva. Diverte-se com frioleiras, obedece a  mestres que ela mesma escolhe. Gosta de dividir-se em nações e vestir-se  ridiculamente em trajes nacionais para se exterminar por música. Depois, vós  outros ergueis estátuas aos que vos levam à matança. Arruinai-vos, suicidais-vos  e, no entanto, não podeis viver sem arrancar à Terra o pão cotidiano. É uma  triste situação essa, mas que basta largamente à maior parte dos habitantes do  planeta. Se alguns, de aspirações mais elevadas, têm, às vezes, pensado nos  problemas de ordem superior, na natureza da alma, na existência de Deus, o  resultado não tem sido melhor, pois puseram as almas fora da Natureza, e  inventaram uns deuses esquisitos, infames, que jamais existiram senão na sua  imaginação pervertida, e em cujo nome têm cometido todos os atentados à  consciência humana, abençoado todos os crimes e submetido os espíritos fracos à  escravidão, da qual difícil será libertarem-se. O menor animal, em Marte, é  melhor, mais belo, mais meigo, mais inteligente e mais grandioso do que o deus  dos exércitos de David, de Constantino, de Carlos Magno e de todos os assassinos  coroados. Não há, pois, que admirar a tolice e a grosseria dos Terrestres. Mas a  lei do progresso rege o mundo. Estais mais adiantados do que no tempo dos  antepassados da idade da pedra, cuja mísera existência se consumia em disputar  os dias e as noites às feras. Em algumas centenas de séculos estareis mais  adiantados do que hoje. Então Urânia reinará nos vossos  corações.
 – Seria  mister um fato material, brutal, para instruir os humanos e convencê-los. Se,  por exemplo, pudéssemos entrar algum dia em comunicação com a terra vizinha em  que habitas, não em comunicação psíquica com um ser isolado, qual o faço neste  momento, mas com o próprio planeta, por centenas e milhares de testemunhos,  seria isso um gigantesco vôo para o progresso.
 – Poderiam consegui-lo desde já, se o quisessem; pois, pelo que nos  toca, em Marte, estamos inteiramente preparados para isso, e o temos mesmo  tentado já por muitas vezes. Os da Terra, porém, jamais nos responderam!  Refletores solares, desenhando em vossas vastas planícies figuras geométricas,  provavam que existimos. Poderiam responder-nos com figuras semelhantes, traçadas  em suas planícies, ou durante o dia, ao sol, ou durante a noite, com a luz  elétrica. Vós outros, porém, nem nisso mesmo pensais e, se alguém propusesse  tentá-lo, os juízes declará-lo-iam interdito, pois só essa idéia está  inacessivelmente acima do consenso universal dos cidadãos do teu planeta. Em que  se ocupam as suas assembléias científicas? Em conservar o passado. Em que se  ocupam as suas assembléias políticas? Em aumentar os encargos públicos. No reino  dos cegos os zarolhos são reis.
 “Mas  não se deve perder totalmente a esperança. O progresso os arrebata a pesar seu.  Um dia saberão que são cidadãos do céu. Viverão então na luz, no saber, no  verdadeiro mundo do Espírito.”
 Enquanto o habitante de Marte me dava a conhecer os principais  traços da sua nova Pátria, o globo terrestre tinha voltado para o Oriente, o  horizonte se inclinara e a Lua se erguera gradualmente na cúpula celeste que ela  iluminava com o seu clarão. De repente, baixando os olhos para o lugar onde  Spero estava sentado, não pude conter um movimento de surpresa. O clarão do luar  espalhava a sua luz, tanto sobre a pessoa do meu amigo quanto sobre mim, e, no  entanto, ao passo que o meu corpo projetava sombra no parapeito, o dele ficava  sem sombra! Levantei-me bruscamente para verificar melhor o fato, e voltei-me  logo, estendendo a mão até o seu ombro e seguindo no parapeito a sombra do meu  gesto. Instantaneamente, porém, o meu visitante desaparecera. Achava-me  absolutamente só, na torre silenciosa. A minha sombra, muito negra, projetava-se  distintamente no parapeito. A Lua brilhava. A cidade dormia a meus pés. O ar  estava tépido e sem brisas.
 Entretanto, pareceu-me ouvir passos. Prestei atenção, e distingui  com efeito uns passos bastante pesados que se aproximavam de mim. Evidentemente  subiam na torre.
 – O  senhor não desceu ainda! – exclamou o guarda, parando no terraço –. Eu estava  esperando para fechar as portas, e supunha que as experiências se achavam  terminadas.