NO  LIMIAR  DAS   CAVERNAS – OBSECADOS PELO DINHEIRO
 
André Luiz
   
Reunidos agora, Calderaro e eu, à  comissão de trabalho socorrista que operaria nas  cavernas de sofrimento, fui surpreendido pela expressão da Irmã  Cipriana, que chefiava as atividades dessa natureza.
Constituía-se a turma de reduzido  número de companheiros: sete ao todo.
Avistando-me ao lado do Assistente,  perguntou Cipriana com singeleza:
            ― Pretende o irmão André seguir em  nossa companhia?
O abnegado amigo respondeu que o  próprio instrutor Eusébio lembrara a conveniência de  minha visita aos abismos purgatoriais; esclareceu que eu me achava  interessado em obter informes da vida nas esferas inferiores, para os  relatar aos amigos encarnados, auxiliando-os na preparação necessária à ciência  de bem viver.
A diretora ouviu, bondosa, e  objetou:
            ― Sim, a sugestão de Eusébio é  valiosa, em se tratando de observações preliminares no Baixo Umbral. Como  responsável, porém, pelos serviços diretos da expedição, não posso admiti-lo,  por enquanto, em todas as particularidades.
Fixou em mim o olhar lúcido e meigo,  como a lastimar a impossibilidade, e acrescentou:
            ― Nosso estimado André não tem o  curso de assistência aos sofredores nas sombras  espessas.
Afagou-me de leve, com a destra  carinhosa, e acrescentou:
            ― Se nos é indispensável obter  difícies realizações preparatórias, a fim de colhermos os benefícios das Grandes  Luzes, é-nos imprescindível a iniciação, para ministrarmos esse mesmo benefício  nas <
Ante o meu indisfarçável  desapontamento, a veneranda benfeitora continuou:
            ― No entanto, convenhamos que o  nosso irmão não se encontra, junto de nós, sem problemas substanciais a  resolver. Cada situação a que somos conduzidos é portadora de ocultos  ensinamentos para o nosso bem. Os desígnios superiores jamais nos propõem  questões de que não necessitemos, na arena das circunstâncias. Se Eusébio foi  levado a sugerir esta oportunidade, é que André Luiz tem nestes sítios urgente  serviço a prestar. Considerando, porém, as responsabilidades que me cabem, não  posso autorizar que nos siga em todos os passos; contudo, convido o irmão  Calderaro a permanecer, em companhia do prestimoso aprendiz, no limiar das  cavernas, sem descerem conosco; mesmo aí, estudioso que é, ele encontrará  inesgotável material de observação, sem necessidade de enfrentar situações  embaraçosas, para as quais ainda não se aprestou  convenientemente...
Em face da solução apresentada,  alegria geral voltou a confortar-nos. Agradeci, contente. Calderaro também se  manifestou reconhecido. E, no júbilo dos trabalhadores que se regozijam com o  ensejo de incessantemente aprender para o bem, seguimos na direção de zona  medonhamente sombria.
Ah! já divisara  tremendos precipícios, onde entidades culposas se interpelavam umas às outras em  deploráveis atitudes; vira chover faíscas chamejantes do firmamento sobre os  vales da revolta; descobrira inúmeras entidades senhoreadas por estranhas  alucinações em câmaras retificadoras; mas ali...
Estaríamos acaso alcançando a  <
Laceravam-me o coração  as vozes lamentosas dispersas a se evolarem para o céu de fumo! Não, não eram  lamentações apenas; à proporção que nos adiantávamos, descendo, modificava-se a  gritaria; ouvíamos também gargalhadas, imprecações.
Estacamos em enorme  planície pantanosa, onde numerosos grupos de entidades humanas desencarnadas se  perdiam de vista, em assombrosa desordem, à maneira de milhares de loucos,  separados uns dos outros, ou aos mangotes, segundo a espécie de desequilíbrio  que lhes era peculiar.
Não me era possível  calcular a extensão da várzea imensa, e ainda que houvesse marcos topográficos,  para tal apreciação, o nevoeiro era demasiado denso para que se pudessem  computar distâncias. 
Percorremos alguns  quilômetros em plano horizontal, e, quando o terreno se inclinou, de novo,  abrindo outras perspectivas abismais, Irmã Cipriana e os colegas  prazenteiramente se despediram de nós, deixando-nos, ao Assistente e a mim, com  o aviso de que voltariam a buscar-nos dentro de seis  horas.
Abraçando-me, a diretora disse,  gentil:
            ― Desejo-te, meu amigo, feliz êxito  nos estudos. Certo, ao voltarmos, receberemos tuas confortadoras  impressões.
Sorri, encantado, a tão generosa  demonstração de apreço.
Logo após, Calderaro e  eu nos achamos a sós na atra vastidão povoada de habitantes  estranhos.
As conversações em  torno eram inúmeras e complexas. Pareceu-me que aquele <
Enquanto densas turbas  de almas torturadas se debatiam em substância viscosa, no solo, onde andávamos,  assembléias de Espíritos dementes enxameavam não longe, em intermináveis  contendas por interesses mesquinhos.                  
A paisagem era  francamente impressionante pelos característicos infernais que nos circundavam.  Notando a displicência de muitos daqueles irmãos infelizes, não sopitei as  lucubrações que me surgiam. 
Os grupos de  infortunados agiam, ali, desconhecendo os padecimentos uns dos outros. Certos  grupos volitavam a pequena altura, como bandos de corvos negrejantes, mais  escuros que a própria sombra a envolver-nos, ao passo que vastos cardumes de  desventurados jaziam chumbados ao solo, quais aves desditosas, de asas  partidas... Como explicar tudo isso? 
Iniciei meu interrogatório,  dirigindo-me ao instrutor:
            ― Será que estes míseros precitos  nos vêem?   
            ― Alguns sim, mas não nos ligam  maior importância: estão muito preocupados consigo mesmos; abrigaram no coração  sentimentos rasteiros, e tardarão em se libertarem deles.
            ― Toda esta gente permanece, porém,  desamparada, entregue a si mesma?
            ― Não ― respondeu Calderaro,  paciente ―; funcionam, por aqui, inúmeros postos de socorro e variadas escolas,  em que muita gente pratica a abnegação. Os padecentes e as personalidades  torturadas são atendidas, de acordo com as possibilidades de aproveitamento que  demonstram.
Estampou complacente  expressão no rosto e considerou:
            ― As regiões inferiores jamais  estarão sem enfermeiros e sem mestres, porque uma das maiores alegrias dos céus  é a de esvaziar os infernos. 
Vendo bandos de seres a  se locomoverem no ar, quase a nos rentear, recordei que em nossa colônia as  faculdades de volitação não eram comumente exercidas para não melindrarmos  aqueles que as não possuíam desenvolvidas; mas...e ali? Criaturas de baixas  condições se moviam nos ares, embora a poucos metros do  solo.
Calderaro, porém,  explicou:
            ― Não te surpreendas. A volitação  depende, fundamentalmente, da força mental armazenada pela inteligência;  importa, contudo, considerar que os vôos altíssimos da alma só se fazem  possíveis quando à intelectualidade elevada se alia o amor sublime. Há Espíritos  perversos com vigorosa capacidade volitiva, apesar de circunscritos a baixas  incursões. São donos de imenso poder de raciocínio e manejam certas forças da  Natureza, mas sem característicos de sublimação no sentimento, o que lhes impede  grandes ascensões. No que se refere, entretanto, às entidades admitidas à nossa  colônia espiritual, ainda em grande número incapacitadas de usar tal vantagem, o  fenômeno é natural. É mais fácil recolher criaturas de maiores cabedais de amor  com reduzida inteligência, e convivermos com elas, no processo evolucionário  comum, do que abrigarmos pessoas sumamente intelectuais sem amor aos  semelhantes; com estas últimas, a vida em comum, no sentido construtivo, é quase  impraticável. Neste capítulo da volitação, portanto, impende observar os  ascendentes naturais, levando em conta, com a própria Natureza, que os corvos  voam baixo, procurando detritos, enquanto as andorinhas se libram alto, buscando  a primavera.
Feito o reparo, perguntei,  lembrando-me das injunções terrenas:
            ― Mas...e as necessidades de  subsistência?
O instrutor não se fez rogado e  informou:
            ― Nada lhes falta quanto às  exigências essenciais de socorro e de manutenção, como ocorre num nosocômio da  esfera carnal.
O Assistente fez breve pausa e  prosseguiu:
            ― Referindo-nos ao manicômio,  esclareço agora que minha intenção, ao visitar um hospício em tua companhia, foi  justamente o de preparar-te para a excursão que ora efetuamos. Temos aqui,  nestas assembléias de incompreensão e dor, infindas fileiras de loucos que  voluntáriamente se arredaram das realidades da vida. Fixaram a mente nas zonas  mais baixas do ser, e, olvidando o sagrado patrimônio da razão, cometeram faltas  graves, contraindo pesados débitos.
Já viste, em nossa organização  espiritual de vida coletiva, irmãos sofredores convenientemente amparados;  alguns ainda sofrem estranhas perturbações alucinatórias, outros são guardados à  maneira de múmias perispiríticas em letargia profunda, aguardando-se-lhes o  despertar; outros povoam vastas enfermarias para se reerguerem espiritualmente  pouco a pouco... Aqui, no entanto, se congregam verdadeiras tribos de criminosos  e delinqüentes, atraídos uns aos outros, consoante a natureza de faltas que os  identificam. Muitos são inteligentes e, intelectualmente falando, esclarecidos,  mas, sem réstia de amor que lhes exalce o coração, erram de obstáculo a  obstáculo, de pesadelo a pesadelo... O choque da desencarnação para eles, ainda  impermeáveis ao auxílio santificante, pela dureza que lhes assinala os  sentimentos, parece galvanizá-los na posição mental em que se encontravam no  momento do trânsito entre as duas esferas, e, dessa forma, não é fácil de logo  arrancá-los do desequilíbrio a que imprevidentes se precipitaram. Retardam-se,  às vezes, anos a fio, obstinando-se nos erros a que se habituaram, e, vigorando  impulsos inferiores pela incessante permuta de energias uns com os outros,  passam, em geral, a viver, não só a perturbação própria, mas também o  desequilíbrio dos demais companheiros de infortúnio.
Ante o pandemônio que observávamos,  o orientador continuou:
            ― O Érebo da concepção antiga, a  crepitar em eternas chamas de vingança divina, é perigosa ilusão; entretanto, os  lugares purgatoriais dos desejos e das ações criminosas, aguardando as almas  enodoadas pelos desvarios, constituem realidades lógicas, nas zonas espirituais  do mundo. Aqui, os avarentos, os homicidas, os cúpidos e os viciados de todos os  matizes se agregam em deplorável situação de cegueira íntima. Formam cordões  compactos, inclinando-se mais e mais para os despenhadeiros. Cada qual possui  romance horrível, de angustiosos lances. Prisioneiros de si mesmos, cerram o  entendimento ás revelações da vida e restringem os horizontes mentais,  movimentando-se em seu próprio interior, em ação exclusiva, nos impulsos  primários, a cultivar o pretérito que deveriam expungir. Em melhorando, são  assistidos por ativas e abnegadas congregações de socorro que aqui funcionam.  Autoridades mais graduadas de nossa esfera, atendendo a imperativos superiores,  improvisam tribunais com funções educativas, cujas sentenças, ressumando amor e  sabedoria, culminam sempre em determinações de trabalho regenerador, através da  reencarnação na Crosta Terrestre, ou de tarefas laboriosas no seio da Natureza,  quando há suficiente compreensão e arrependimento nos interessados que feriram a  Lei, ofendendo a si mesmos. 
Deste vastíssimo  arsenal de alienação da mente, ensombrada de culpas, sai o maior coeficiente das  reencarnações dolorosas que povoam os círculos carnais. Daqui, como de outras  zonas análogas, seguem para o campo físico, mais denso, milhões de irmãos em  provas ríspidas, para que se alijem dos débitos e rearmonizem o íntimo  perturbado. Poucos conseguem valer-se da oportunidade terrena, no sentido de  restaurar as próprias energias. É sempre fácil fugir ao caminho reto; muito  difícil, porém, o retorno...
Nesse instante aproximou-se de nós  enorme e barulhenta colméia de sofredores. Tratava-se de tenebroso agrupamento  de irmãos positivamente loucos. Falavam a esmo, comentando homicídios;  rememoravam com palavras cruéis cenas indescritíveis de dor e de  perversidade.
Nenhum deles atinou com a nossa  presença.
Calderaro, muito sereno,  conhecendo-me a curiosidade inveterada, informou:
            ― Estes infelizes permanecem  jungidos uns aos outros em obediência a afinidades quase perfeitas, e são  contidos apenas pelas leis vibratórias que os regem. Se quiseres, porém, entrar  em relação com a história de alguns deles, sonda a mente individual do tipo que  te requeira maior atenção.
Aproveitando um momento em que lhes  amainara a rixa, aproximei-me de infortunado irmão, que impressionava pela  facies macilenta.
Sintonizei-me na onda mental que ele  oferecia, mas o quadro que vi não me permitiu longa  perquirição.
Notei-lhe o motivo que culminara no  desvario: assassinara a esposa em pavorosas circunstâncias. Contudo, o mísero  não transpirava arrependimento; acariciava o desejo de rever a vítima para  supliciá-la, quantas vezes lhe fosse possível.
Que tragédia se  ocultava, ali, naquelas tormentosas reminiscências?
Atônito, ergui os olhos  para o assistente, em muda interrogação, mas, renteando-nos a fronte,  levitava-se pesado grupo de seres monstruosos, fazendo ensurdecedor ruído, e  logo esqueci o uxoricida que me prendera a atenção. Calderaro, percebendo-me a  perplexidade, explicou:
            ― Este bando de Espíritos  miseráveis, que se movimentam como lhes é possível, é constituído de antigos  negociantes terrenos, cujo exclusivo anseio foi amontoar dinheiro para  satisfazer a própria cupidez, sem beneficiar a ninguém.  
O ouro, que  transitóriamente lhes pertencia, jamais serviu para semear a gratidão num só  companheiro de jornada humana. Famintos de fortuna fácil, inventaram mil  recursos de monopolizar os lucros grandes e pequenos, em nada lhes interessando  a paz do próximo.
Foram homens de  pensamento ágil, sabiam voar mentalmente a longas distâncias, garantindo êxito  absoluto às empresas materiais que levavam a termo com finalidade exclusivamente  egoística. Não lhes incomodava o sofrimento dos  vizinhos,
Ignoravam as  dificuldades alheias, despreocupavam-se do valor do tempo em relação ao  aprimoramento da alma. Queriam unicamente acumular vantagens financeiras, e nada  mais.
 Divorciados da caridade, da compreensão e da  luz divina, criaram para si mesmos o mito frio e rígido do ouro, fundindo com  ele a mente vigorosa e o tacanho coração... Escravizados, agora, à idéia fixa de  ganhar sempre, voam pesadamente aqui e acolá, dementados e confundidos,  procurando monopólios e lucros que não mais  encontrarão.
Condoí-me. Quis deter alguns,  confabular com eles fraternalmente, de modo a esclarecê-los; no entanto, o  instrutor paralisou-me os braços, murmurando:
            ― Que fazes? Seria inútil.  Impossível é reajustar, num momento, apenas com palavras, tantas mentes em  desequilíbrio cruel.
E, impulsionando-me para a frente,  concluiu:
            ― Vamos: consumirias muitas semanas  para conhecer a paisagem de dor que se nos estende à frente, e dispomos apenas  de algumas horas.
 
NO MUNDO MAIOR - Psicografia  Francisco Cândido Xavier – Espírito André Luiz
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