Além da Vida
Roberto de Sousa Causo
De São Paulo
Além da Vida (Hereafter). Estados Unidos, 2010, 129 minutos. Direção de Clint Eastwood. Produzido por Clint Eastwood, Kathleen Kennedy, Robert Lorenz, e Steven Spielberg. Escrito por Peter Morgan. Com Matt Damon, Cécile de France, Frankie e George McLaren, Bryce Dallas Howard, Thierry Neuvic, Lindsey Marshall.
Quando eu era garoto, Clint Eastwood era símbolo de cinema hollywoodiano: o policial que faz justiça com as próprias mãos (Dirty Harry), o herói de pastelão-caipira (Philo Beddoe) e o cowboy solitário (Josey Wales). Eastwood era sinônimo de grandes bilheterias, e foi o ator mais bem pago da grande indústria do cinema. Mas em cada um desses personagens havia o embrião de algo subversivo, e em muitos dos seus filmes de menor bilheteria, o de um cineasta de atitudes e pontos de vista muito pessoais.
Se não falhar a memória, foram os críticos franceses que, em algum momento da década de 1980, o valorizaram pela primeira vez como diretor. Agora com 80 anos, idade em que o sujeito olha muito para trás - para a sua carreira - e para o futuro - para o tempo que lhe resta -, Eastwood comparece com um filme sobre a vida após a morte, e um filme com um estilo, eu diria, bastante europeu.
Não obstante, Além da Vida abre com um forte aceno a Hollywood, na sua tradição do filme catástrofe, com uma impactante seqüência sobre o tsunami que atingiu a Tailândia em 2004. A jornalista francesa Marie LeLay (Cécile De France) está em férias com o namorado (Thierry Neuvic) na Tailândia, quando o desastre acontece. Ela tem uma experiência de quase-morte. Depois disso, Marie fica fascinada pelo assunto da vida após a morte e de suas evidências testemunhais, e se empenha em escrever um livro a respeito, no processo comprometendo a sua carreira de âncora de telejornal. A seqüência do tsunami é bem realizada, ainda que os efeitos de imagens geradas por computador não representem o estado da arte.
O filme acompanha três personagens e seus confrontos com a morte, sendo que cada linha narrativa avança em paralelo às outras. Nesse sentido, o filme é uma "narrativa entrançada", onde os fios se unem apenas na segunda parte ou no seu terço final. Uma segunda linha acompanha os gêmeos londrinos Marcus e Jason (Frankie e George McLaren), em seu esforço para sobreviver unidos como família, diante do fato de que sua mãe, Jackie (Lindsey Marshal), é alcoólatra e viciada em drogas, colocando os dois na mira do serviço social inglês. Enfim, a narrativa que acompanha George Lonegan (Matt Damon) em San Francisco, torna ainda mais explícito o tema do filme: George é um médium vidente, que faz "leituras" ou channeling, como os americanos chamam a comunicação mediúnica.
Curiosamente, o que George representa é o esforço de abraçar a vida - ele já tinha sido famoso como médium, mas essa fama e as demandas incomuns (para dizer o mínimo) da atividade mediúnica tornavam impossível para ele levar uma vida normal. Agora ele está "aposentado", tendo abandonado o status de celebridade por uma vida de classe trabalhadora, empregado em uma fábrica da cidade. À noite, faz um curso de culinária, onde espera conhecer pessoas. Isso acontece quando o professor (Steve Schirripa) coloca uma ruivinha atrapalhada, Melanie (Bryce Dallas Howard), para fazer par com ele.
Melanie é mais direta do que George, e logo os dois estão no pequeno apartamento dele, cozinhando um para o outro. Mas ele não tem "solitário" ("lone") no nome à toa, e a cena, uma das mais intensas e brilhantes do filme, ilustra com surpreendente intensidade e emoção, as agruras da vida de um médium. Isso é realizado pela absoluta segurança e despojamento da direção, e pelo talento de Damon e Howard. A vida de George é complicada também pela insistência de seu irmão (Jay Mohr) em levá-lo de volta ao "negócio" da comunicação mediúnica.
Do outro lado do Atlântico, as explorações de Marcus, que se tornou obcecado em se comunicar com os mortos, fornecem um contraponto e ajudam a caracterizar George como um médium verdadeiro, e não como charlatão ou aventureiro.
Em uma narrativa entrançada, a progressão das diversas linhas narrativas gera um certo suspense sobre como e quando elas irão se encontrar. É o que acontece ao final de Além da Vida, e o entrançamento evita qualquer tentação de retumbancia - ao contrário de outros filmes sobre a vida além da morte, como O Mistério de Libélula (Dragonfly; 2002). O filme de Clint Eastwood também evita ser doutrinário e sensacional como o são Amor Além da Vida (When Dreams May Come; 1998) ou o brasileiro Nosso Lar (2010), valorizando, ao invés, o naturalismo que Eastwood sabe imprimir tão bem, e se voltando para a existência cotidiana de pessoas de países e classes sociais diferentes, marcadas por um questionamento que provavelmente nos atinge a todos, em um momento ou outro da vida.
A direção confere uma atmosfera muito intimista, não apenas pela iluminação e pela fotografia, mas principalmente pela inclusão da câmera - que representa o ponto de vista do espectador - no espaço de interação dos atores. Não se trata de um close à distância, mas da câmera partilhando o mesmo espaço. O filme também foge do esquema hollywoodiano por não ter antagonistas; ao contrário, as pessoas que de algum modo se colocam no caminho dos personagens (o irmão de George, o editor de Marie, os agentes sociais) podem estar contrariados com os heróis, mas têm boas intenções.
O dénouement se dá com a viagem de "turismo literário" de George, que é um grande fã de Charles Dickens, à Inglaterra. A menção a Dickens pode não ser casual - o grande autor inglês do século 19 escreveu muitas histórias de fantasma e o clássico Um Conto de Natal (A Christmas Carrol; 1843), com seus fantasmas dos Natais presentes, passados e futuros.
O que a mudança de ares reserva a George, Marie e Marcus são encontros, contato humano, e o final sugere uma reconciliação de George com o seu dom. O espectador talvez ache que eles são improváveis demais. Mas este é um filme sobre o destino e sobre ordenações da vida que estariam por trás do cotidiano. O ótimo roteiro de Peter Morgan pontua a trajetória dos personagens com ocorrências dos últimos anos, incluindo, além do tsunami, o atentado ao metrô de Londres e a recente crise econômica global. Talvez a mensagem subjacente seja a de que devemos resistir, pois tudo passa, tudo passará, talvez para o melhor.
O resultado final é uma produção que apenas Clint Eastwood poderia ter dirigido, demonstrando, por esse gênero, um interesse que apenas ele poderia ter antecipado.
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4903666-EI6622,00-Cinema+Alem+da+Vida.html
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