MAIS DO QUE UMA TRAGÉDIA
  
 No Brasil, em 2010 temporais mataram pessoas em plena noite de  reveillon. Janeiro de 2011 segue no mesmo caminho: o número de mortos, de  alagamentos e de destruição aumenta a cada dia. Como podemos entender essas  situações? Como combater o medo que aflige milhões de pessoas a cada vez que uma  situação inesperada atinge a vida de desconhecidos, de conhecidos e, algumas  vezes, as nossas próprias?
 Você pode se perguntar o que tantas tragédias tão  diferentes têm em comum. A resposta é que todas elas envolvem a morte de um  grupo grande de pessoas ao mesmo tempo, em situações que angustiam quem se  imagine um dia passando por elas. Inevitavelmente, quando os números assombram,  nosso medo também aumenta, junto com a vontade de entender por quê esse tipo de  acidente ocorre. As perguntas não calam e uma das  que mais causa alarde é com relação àqueles que “escaparam” do acidente: como eu  sobrevivi ao deslizamento se estava exatamente ao lado de alguém que morreu?  Como eu pressenti que não deveria embarcar naquele avião e preferi mudar o  horário da passagem? Como eu consegui sair do prédio apenas um segundo antes do  tremor fazer com que a estrutura viesse abaixo? Será que a resposta a essas  perguntas seria: “ainda não era minha hora”? E, se não era “a minha hora”, era  então o momento em que todas as pessoas que morreram deveriam desencarnar –  juntas?
 A vida futura
 Somos espíritos temporariamente habitando corpos.  Individualidades e imortais. Nossos sentimentos verdadeiros nada têm de material  e continuam existindo mesmo após o desembaraço do corpo físico. Essa a mensagem  de Jesus e que o espiritismo vem demonstrar com as milhares, milhões de  comunicações de filhos, pais, de almas apaixonadas, de amigos reais. Sem essa  constatação a vida na Terra perde o sentido, as perguntas não encontram  respostas e Deus seria uma abstração, para não dizer uma  farsa.
 Em  O Evangelho Segundo o  Espiritismo, Kardec pontua que todas as máximas de Jesus se dirigem para o  grande princípio da vida depois da morte. E vai além: ‘sem essa vida futura, com efeito, a maior parte dos seus  preceitos de moral não teria nenhuma razão de ser’. Toda solicitude de Deus está  para o que realmente importa, nossos espíritos. E ela é infinita. Essa a verdade  que liberta e consola. Mas por que tantos morrendo num mesmo  acontecimento?
 Resgate coletivo
 “Nada há de fatalidade, senão o instante da morte. Quando  esse momento chega, de um jeito ou de outro, não podeis dele vos livrar”. Assim  os espíritos respondem em O livro dos  Espíritos sobre o perecer ou não numa determinada situação.  Já a ideia de resgate coletivo entrou de forma clara no espiritismo no livro  Obras Póstumas, numa mensagem assinada por  Clélia Duplantier.  
 Diz ela: “Essas faltas  coletivas (do passado) é que são expiadas coletivamente pelos indivíduos que  para elas concorreram, os quais se encontram de novo reunidos, para sofrerem  juntos a pena de talião”. 
 Léon Denis  também fala a esse respeito no livro O problema do Ser,  do destino e da dor, quando diz:
  “Sucede que os seres humanos  passíveis dessa reparação se reúnem num ponto pela força do destino, para  sofrerem, numa morte trágica, as conseqüências de atos que têm relação com o  passado anterior ao nascimento. Daí, as mortes coletivas, as catástrofes que  lançam no mundo um aviso”. Além deles, Emmanuel e André Luiz -  através da mediunidade de Chico Xavier - também falam dessas mortes e da  possibilidade de serem associadas a um resgate coletivo. Tudo isso para concluir  que a morte ‘trágica’ pode ter esse caráter, já que tantos espíritos encarnados  e desencarnados falam dela. 
 Mas o espiritismo é uma  doutrina que privilegia a lógica, a razão e o bom-senso. Ao  se generalizar que todos aqueles que morrem em decorrência dessas tragédias  estão resgatando dívidas do passado, talvez estejamos simplificando demais as  possibilidades e aumentando as chances de erro. 
 A soberana justiça é um dos atributos de Deus e deve estar  em tudo, certamente. Mas qual de nós poderia interpretá-la para dizer que tal ou  qual fato foi um resgate coletivo ou não?
 Se a justiça fosse medida simplesmente pelo que acontece ao  corpo, teríamos então que diferenciar o nível de resgate em função da quantidade  e do tipo de material a que cada um sucumbiu. Ou ainda encontrar resposta para a  diferença entre resgate coletivo de milhares que deixam o corpo físico num  terremoto, ou num acidente de avião, por exemplo, em comparação com mais de 2  milhões que morrem de fome, ano após ano.
 Justiça dos homens
 Pedro, o apóstolo, diz que é ‘o amor que cobre uma multidão  de pecados’. 
 Não fosse verdade, a proposta do Cristo de perdoarmos  setenta vezes sete não teria sentido. Se a verdadeira lei fosse o ‘olho por  olho’, partiríamos para uma sociedade que educaria impondo a reparação sempre  pela similitude. Chegaríamos, enfim, na defesa da pena de morte para os que  mataram! Isso está em desacordo com a lei do progresso, não pode estar com a  razão. 
 No caso do terremoto do Haiti, onde perto de 150  mil pessoas deixaram o plano físico, pode ter havido resgate coletivo, como  também provas e até missões. Vamos a um caso em particular: Zilda Arns. Aos 76  anos, idade em que muitos já estão aposentados, essa médica ainda encontrava  forças para amar haitianos que não conhecia, mesmo que para isso tivesse que se  privar momentaneamente da companhia dos filhos e netos, que conhecia e também  amava. Uma vida dedicada à vida. Como ela, certamente centenas ou milhares de  outros que não sabemos nem o nome e que podem estar na mesma situação. 
 Seria necessário um resgate  coletivo para acalmar essas consciências? 
  
 A visão espírita
 Quem foi buscar o texto de Clélia Duplantier pôde ver que  no complemento ela diz: “...para sofrerem juntos a  pena de talião, ou para terem ensejo de reparar o mal que praticaram,  demonstrando devotamento à causa pública, socorrendo e assistindo aqueles a quem  outrora maltrataram.”
  Já Léon Denis escreve no mesmo  livro: “Todos aqueles que sofrem não são forçosamente  culpados em via de expiação. Muitos são simplesmente Espíritos ávidos de  progresso, que escolheram vidas penosas e de labor para colherem o benefício  moral que anda ligado a toda pena sofrida”.
  
 E em O livro dos Espíritos, no item Flagelos  Destruidores fica mais claro ainda: “Durante a vida  (física), o homem tudo refere ao seu corpo; entretanto, de maneira diversa pensa  depois da morte. Ora, conforme temos dito, a vida do corpo bem pouca coisa é. Um  século no vosso mundo não passa de um relâmpago na eternidade. Logo, nada são os  sofrimentos de alguns dias ou de alguns meses, de que tanto vos queixais.  Representam um ensino que se vos dá e que vos servirá no futuro. Os Espíritos,  que preexistem e sobrevivem a tudo, formam o mundo real. Esses os filhos de Deus  e o objeto de toda a Sua solicitude. Os corpos são meros disfarces com que eles  aparecem no mundo. Por ocasião das grandes calamidades que dizimam os homens, o  espetáculo é semelhante ao de um exército cujos soldados, durante a guerra,  ficassem com seus uniformes estragados, rotos, ou perdidos. O general se  preocupa mais com seus soldados do que com os uniformes  deles.”
 E um pouco mais além: “Se  considerásseis a vida na Terra qual ela é e quão pouca coisa representa com  relação ao infinito, menos importância lhe daríeis. Em outra vida, essas vítimas  acharão ampla compensação aos seus sofrimentos, se souberem suportá-los sem  murmurar.” 
 Para os que partiram, chegou a hora. Aos que ficam, mais  uma oportunidade de exercitar a fraternidade com os necessitados e a resignação  na bondade e na justiça divina.
 
Carlos Eduardo Cenerelli
 
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